HUGO VALE
(16.06.17_PT)
I
A obra de Lelio Demichelis, A religião tecno-capitalista1, saiu do prelo em 2015, ano em que a austeridade, órfã do horário nobre e desterrada do impacto mediático que adquirira em anos anteriores, começa a naturalizar-se, já não por via de autos-de-fé dos missionários do liberalismo económico ou mesmo actos de realpolitik, prosaicamente no quotidiano dos povos ocidentais – em particular, nos povos dos países ocidentais periféricos. Demichelis, como que por teimosia, volta a redefinir o enfoque, a acicatar o braseiro manso, alertando para o modo como o estranho caso da cassação dos direitos democráticos individuais acabou por se entranhar, naturalizar, no tecido social protelando indefinidamente o estado de excepção.
Mas dupla teimosia de Demichelis; se, por um lado, reajusta o compasso da procissão, por outro, fá-lo por via de um paradigma que parecia abandonado.
Deitando a mão aos paradigmas de poder que Michel Foucault estuda – e abandona – na década de 1970, Demichelis ignora intencionalmente os limites que esses paradigmas encerram. Limites esses que foram expostos por Byung-Chul Han para quem, na obra Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder2, é urgente reconfigurar o paradigma de poder pois, para o autor germano-coreano, o poder, que em Foucault tinha no corpo o seu locus de investimento, vira-se agora para a psique. Ainda que Foucault tenha achado na biopolítica um instrumento aparentemente positivo, que permite amplificar, potenciar a vida – na realidade, conjura a expropriação da autonomia e liberdade individuais –, abrindo caminho a uma arte da vida que a coloca, simultaneamente, como objecto de poder e sujeito de resistência, trata-se, porém, ainda, de um investimento sobre o corpo. Evidentemente, sobre um corpo genérico: o corpo da população; todavia, em última instância, ainda e sempre do corpo. Assim, o que Foucault não percebeu, diz Han, foi que o poder, hoje sobreimpresso no neoliberalismo, “não se ocupa primariamente do «biológico, [d]o somático, [d]o corporal». Pelo contrário, descobre a psique como força produtiva.” 3
Apesar da partição «mente\corpo» não ter lugar no corpus teórico de Foucault, a evidência de que algo mudou, de que a contemporaneidade nos assalta com desafios diversos daqueles com que Foucault se debatera, é um dos méritos de Han. Contudo, este sublinhado crítico de Han não teria tido lugar sem os contributos seminais de Deleuze. É que o próprio Deleuze ao abordar a filosofia de Foucault, ao ponto de lhe dedicar uma obra, não vai deixar de continuá-la. E se todas as crises são uma oportunidade de novidade, com a morte precoce de Foucault na primeira metade da década de 80, a tarefa de ontologizar o presente tinha ficado por concluir. Haveria de ser Deleuze quem, perscrutando o ar do tempo, levaria mais longe o pensamento de Foucault.
Em Post-Scriptum sobre as sociedades de controlo, Deleuze enfrenta uma nova mutação no paradigma de poder. Emergindo na sombra da biopolítica, Deleuze antecipa “a instalação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação” 4. Não se deve, contudo, deixar de notar que este novo paradigma baseado no controlo surge, não para substituir o paradigma biopolítico, com o qual coabita, mas o paradigma disciplinar. Ao longo do artigo citado, se Deleuze nunca menciona a biopolítica será porque esta, tal como Foucault a viu, se mantinha actual e nada lhe haveria a acrescentar. Todavia, se alguma modificação há a notar, esta incide nas instituições geradas pelo paradigma disciplinar, as quais “eram já o que nós já não éramos, o que nós estávamos a deixar de ser”5, e que nessa obsolescência, importa verificar que redimensionamento se lhes seguiria, que forma actualizada adquiririam, enfim, que mutações sofreriam e que consequências fabricariam; em suma, face a decrepitude das instituições provenientes do paradigma disciplinar caberia perceber que conversão social se operaria na sua substituição. A este paradigma, que subterraneamente promovia a substituição da sociedade disciplinar, Deleuze chamou sociedade de controlo6.
Apesar de Deleuze não ter tentado perceber de que forma é que a dívida, enquanto dispositivo de banimento e exclusão de um modo bom de vida neoliberal, produz a verdade do processo de subjectivação nas sociedades de controlo, será em Maurizio Lazzarato que se encontrará a etapa seguinte. Se Deleuze, expandindo a grelha de análise dos paradigmas de poder, continua Foucault, será Lazzarato a encarregar-se de levar às últimas consequências o papel que a dívida, inventariada por Deleuze, tem na construção das nossas sociedades presentes. Assim, para além de Byung-Chul Han, também a linha teórica de Lazzarato surge do esgotamento do modelo de Foucault.
Para Lazzarato, se a governamentalidade – a arte de gerir uma população – neoliberal se constitui em função da dívida, que integra todas as relações de poder, pode pensar-se o paradigma biopolítico de Foucault como ultrapassado. Segundo este paradigma biopolítico, instaurado sobre o laissez-faire, é a natureza liberal que faz alastrar a esfera económica à totalidade da sociedade, veiculando, desse modo, uma subjectividade tipificada pelo homo œconomicus, onde o que era considerado era a liberdade da propriedade privada e dos proprietários. Para Lazzarato, este sistema de governamentalidade biopolítico desenhado por Foucault, como que sintomatizando uma arte de governar contemporânea que passaria por um tipo de criação subjectiva, a do homo œconomicus, do liberal, do empresário de si, é, hoje em dia, uma “certa ingenuidade política”7, porque vemos que o seu desfecho sempre produziu um acréscimo de autoritarismo: “crise, restrição da democracia e das liberdades «liberais» e instalação de regimes mais ou menos autoritários, segundo a intensidade da luta de classes que haja para libertar a fim de se manterem os «privilégios» da propriedade privada”8. Assim, a crise que temos vivido não é apenas uma crise financeira, mas, acima de tudo, uma crise do paradigma governamental neoliberal que nos tem governado.
Porém, uma outra linha se abre fecundando o paradigma biopolítico que, para Lazzarato, se encontra obsoleto. Trata-se de Lelio Demichelis que, na sua obra A Religião Tecno-Capitalista, se situa bem no seio do paradigma da governamentalidade biopolítica.
II
0. Na obra A religião tecno-capitalista, Lelio Demichelis tenta mostrar o conflito insanável entre democracia e capitalismo, entre o poder do povo e o poder do capital, entre demos e mercado. Porém, antes de mais, Demichelis pretende dar a ver como os termos técnica e capitalismo, que cumula como tecno-capitalismo, são predicados de uma religião, de uma religiosidade contemporânea cuja especificidade resulta da transferência do lugar de culto para o mercado; a singularidade da religião tecno-capitalista reside na sacralização, na deificação do mercado.
A religião, pensada enquanto complexo de crenças que visa racionalizar, regulamentar e controlar a relação do homem com o divino, é apresentada por Demichelis através do figurino tecno-capitalista, contemplando: ritos, que se revelam através do consumo, do mercado e da competição; templos, materializados na bolsa e nos bancos; uma representação, prefigurada na publicidade; símbolos, tais como a mercadoria ou o produto; uma narrativa, conduzida pela mão invisível; elementos totémicos, como a bolsa e a banca; o tabu, materializado no spread, na inutilidade, no dever estar conectado.
O sonho do capitalismo, para quem a lentidão e as concessões inerentes ao processo democrático são um fastídio9, consiste num Estado pensado, organizado, interpretado e experimentado por todos segundo a “forma-empresa”. Porém, não se trata do velho capitalismo de Estado, onde ao Estado caberia não interferir em assuntos relacionados com o mercado, mas de um Estado capitalista no qual este tem por tarefa suportar empresas privadas too big to fail10. Tal Estado capitalista caracteriza-se por: veicular o capitalismo como único modelo económico; entender a “forma-empresa” como único modo de existência pessoal; desresponsabilizar-se da procura da maximização do bem comum, alcançável por via da relação capital-trabalho, mas transforma-se em sujeito capitalista que persegue e promove o interesse privado e privatizante.
Demichelis sombreimprime o totalitarismo no processo técnico e capitalista da produção contemporânea da realidade, o qual, sendo hegemónico e global, é, aparentemente, não totalitário – por promover a liberdade individual – e religioso. Socorrendo-se da caracterização do totalitarismo realizada por Hannah Arendt, o autor actualiza-o ao contexto contemporâneo. Assim, o aparato tecno-capitalista é: ideológico, porque capitalismo e técnica surgem como justificação do passado, interpretação do presente e legitimação do futuro; propagandístico, pois tem na publicidade, no marketing, e na instrução os seus veículos; produz a mentira sistemática, utilizando a austeridade como telos económico-social; vale-se do terror, da violência, e da polícia secreta, tendo a Troika como epígono; promove o isolamento dos indivíduos, mediante estímulos que promovem a confusão entre vida profissional e vida privada; e é um veículo político de partido único, onde a economia de mercado se sobrepõe ao Estado. O espírito deste tempo, tutelado pelo aparato tecno-capitalista, produz o homem tecno-capitalista.
A verdade do processo de produção da subjectividade tecno-capitalista encontra a sua potência na capacidade de organizar integrando, isto é, na capacidade de organizar a singularidade integrando-a no TODO\UNO que é a rede. Trata-se de uma reactualização da Crítica da razão política11 de Foucault, em que o princípio da racionalidade soberana consistia em reunir, guiar e conduzir os seus súbditos, fazendo-o de forma, simultaneamente, individualizante e totalitária, para todos e para cada um (omnes et singulatim). No caso concreto do tecno-capitalismo, o seu poder reside na subdivisão do trabalho, que produz o isolamento dos indivíduos que serão, posteriormente, individual e singularmente, integrados no TODO\UNO da rede. O aparato, mediante o processo de isolamento e integração, produz uma narrativa comum tecno-económica que constrói um sentido e direcção únicos, fazendo com que cada um se comporte como um só, conferindo uma forma técnica e económica precisa ao homem e à sociedade. O aparato tecno-capitalista, funcionando como navegador existencial12 é, assim, um poder-saber organizativo que separa para totalizar, divide para recompor e, falsamente, individualiza e personaliza para integrar as partes no TODO, deixando-se traduzir pelo slogan: “crer, obedecer, conectar-se e competir” 13.
O tecno-capitalismo oferece um modo de viver o quotidiano, organizando a vida dos homens, o seu trabalho, estável ou precário, assim como o seu lazer, de forma a minguar a liberdade e produzindo uma retórica infinita onde a liberdade e a individualidade não são senão predicados a ser integrados no modo de funcionamento do aparato. É que esse aparato não tolera aquilo que considera como inútil: a liberdade, a imaginação economicamente improdutiva, a solidão necessária à reflexão, o cuidado de si, a autonomia do indivíduo, o direito a não estar ligado, o direito a não confundir a vida com trabalho e consumo.
1. No primeiro capítulo – A máquina do poder. O poder da máquina –, Demichelis apressa-se a emoldurar o agenciamento entre mercado e técnica. Se, por um lado, a máquina de poder do mercado é operada por uma elite técnica especializada na perpetuação da narrativa capitalista, o poder da máquina consiste na técnica tornada aparato, consiste na determinação dos modos de vida, nos modos de experimentar o gozo, a tristeza, a felicidade, as relações, em suma, consiste nos roteiros predefinidos das formas de experimentar o mundo.
Este agenciamento virtuoso entre a máquina do poder (mercado) e o poder da máquina (técnica) produz uma máquina totalitária que intersecta dois eixos: o individual e o colectivo. Este investimento paralelo e simultâneo disciplina os indivíduos recorrendo a uma excitação tecnológica e narcísico-consumista comum, e governamentaliza a sociedade através de uma sedação social, política e cultural que visa a docilização individual e colectiva, a estandardização das populações e do indivíduo.
Com este aparato posto a funcionar como regulador das nossas experiências do mundo, percebe-se como a criação, efabulação, imaginação de mundos outros, se encontra erradicada do leque de experiências possíveis. Aliás, o aparato tecno-capitalista exila o possível do mapa conceptual que regulamenta a experiência contemporânea do mundo e, consigo, a democracia ela própria. No mundo em que vivemos já não há possibilidade, liberdade, mas adequação e congruência, o que faz com que vivámos, nas palavras de Demichelis, na era da post-democracia, da democracia sem conteúdo, meramente formal, expressa através de manifestações pontuais, residuais – eleições – que determinam elites governativas que agem em função do mercado. A desilusão, na era da post-democracia, em que a economia exaure a racionalidade política, onde o privilégio concedido à gestão dos mercados, ao invés do destaque sobre a coisa pública, agudiza as assimetrias sociais, é produtora de populismo; democracia de jure, formal, mas não de facto, substancial.
O totalitarismo tecno-capitalista é uma máquina, diz-nos Demichelis, que produz “destruição e empobrecimento em massa” 14, controlando o pensamento dos indivíduos. Produz, também, insidiosamente, integração, pertença, sentido de comunidade e um potentíssimo conformismo produzido pela conectividade da rede. O grande Deus dos nossos dias é o tecno-capitalismo que “integra, controla e cria mecanismos de conexão e cooperação em rede para que todos se comportem bem – sejam dóceis, diria Foucault – sendo integrados e controlados na sua produtividade” 15.
2.0 No segundo capítulo – O tecno-capitalismo ou a democracia –, Demichelis refere que, para que o totalitarismo tecno-capitalista se consumasse, foi necessário direccionar a acção pedagógica no sentido de produzir o adestramento e os discursos colectivos – uma narrativa unificadora comum – que têm congeminado uma redefinição, desde 1970, teórico-prática da experiência democrática. O actual estado agonizante da democracia é também um caminho que o homem, enquanto sujeito, partilha, vendo-se transformado em elemento de uma rede que funciona em piloto automático.
Demichelis actualiza o Leviatão de Thomas Hobbes para retratar o actual mercado global, o qual pretende produzir flexibilidade, risco e insegurança individuais, defendendo a guerra. Ao recriar o estado de natureza, estado de guerra que é hoje económica, onde todos estão (voluntariamente) obrigados ao poder soberano do mercado, Demichelis pretende validar a hipótese de que o mercado se encontra hoje autorizado a exercitar o seu poder de induzir a guerra económica de uns contra os outros. Trata-se de uma nova Era – capitalismo 2.0 –, onde o novo proletariado, obediente, flexível e dócil, tem por vocação adaptar-se ao mercado. Um proletariado 2.0 cada vez mais débil, empobrecido e isolado, ainda que, mais do que nunca, ligado a uma rede capitalista que valida a transformação antropológica e cultural que o origina.
O aparato tecno-capitalista, que não tolera o inútil, o improdutivo, é um aparato organizativo que separa e hierarquiza as partes para depois as integrar no seu funcionamento, fazendo, refere Demichelis com que “cada um viva a organização como coisa própria e pessoal” 16. O poder contemporâneo exerce-se, desse modo, de forma totalitária, através de procedimentos que administram a vida dos povos como se estes fossem mercadoria, inserindo-os na rede de molde a que ajam de acordo com a lógica da conexão, entendida como bem supremo do aparato, a expensas da autonomia e da individualidade.
3. No terceiro capítulo – A máquina (da conexão e) do consenso –, Demichelis revela a rede, a conexão, através do imperativo dever estar ligado!, como o fim do Homem. O processamento, enquanto forma de funcionamento do aparato tecno-capitalista, por via da produção da passividade, integra os seus elementos, deixando ver a práxis implícita nesta forma de funcionamento: para funcionar, o aparato necessita da validação dos seus elementos. Esta revelação, apresentando-se enquanto imperativo político, alerta, responsabiliza todos e cada um que aja no sentido de validar, garantindo, o modo de funcionamento de um aparato organizativo que propaga o assujeitamento voluntário.
O processo de produção da subjectividade homologado pelo aparato, investindo sobre as ideias de conformismo e auto-referencialidade, produz comunidades mas não uma verdadeira sociedade, a qual, implicada nas ideias de responsabilidade e autonomia, se contrapõe ao conformismo. Daí Demichelis, inspirando-se uma vez mais em Foucault – desta vez nos últimos anos da sua produção teórica –, advogar um processo de subjectivação que tem por princípio a produção de si, a forma como se determina autonomamente viver. Trata-se da clássica cifra, tornada célebre por Foucault, do cuidado de si (epimeleia heautou), tomada enquanto elemento de contra-conduta capaz de erodir o funcionamento do aparato tecno-capitalista. Um tomar para si a própria vida, ser autonomamente – de si para si – autor e actor da sua vida e, com isso, praticar a arte da vida, é isso que é sugerido enquanto dispositivo capaz de contra-efectuar os modos de vida veiculados pelo aparato e, nisso, nessa disrupção, nessa invalidação, emancipar-se dele.
Continuando a alicerçar-se em Foucault, Demichelis defende que a economia não deve ser a fórmula da racionalidade governativa. Contra a governance dos chefes de Estado, que promovem um Estado mercado, é necessário regressar a um government dos parlamentos. Mais Estado e menos mercado, promovendo um regresso ao público em contraste com as privatizações colectivas que tipificam o tecno-capitalismo. No actual estado de coisas, paz social e concórdia são impostas através da adaptação e adequação “dos indivíduos às inovações introduzidas e comunicadas” 17 – mas não debatidas nem discutidas democraticamente – pelo aparato.
4. No quarto capítulo – O poder pastoral do tecno-capitalismo –, Demichelis socorre-se, uma vez mais, do jargão foucaultiano. Desta vez, por via do poder pastoral – paradigma de poder que Foucault explora em Omnes et Singulatim: Para uma crítica da racionalidade política – porém, já não incidindo sobre o soberano, entendido enquanto expressão legítima com poder para orientar, guiar, dirigir a vida dos seus súbditos, mas sugerindo uma nova ordem soberana que tem no tecno-capitalismo um novo pastor, pois o que se diz, o que se pensa, os modos de vida, tudo está orientado na direcção da validação da rede.
Os particularismos do aparato redefinem a relação de dependência ao pastor, que é hoje estabelecida pela: direcção de consciência, isto é, pela subordinação voluntária ao pastor, que é hoje um leader, uma app, um GPS, ou um qualquer motor de busca (navegador), que guiam, indicam, determinam, a direcção a seguir; confissão, enquanto auto-denúncia, auto-expiação, via para a remoção do sentimento de culpa, fazendo da rede um confessor através das suas múltiplas vitrinas: tweeter, facebook, instagram…
5. No quinto capítulo – Do homo œconomicus ao homo technicus –, Demichelis, inserindo-se no contexto foucaultiano em que, a cada paradigma de poder se encontra afecto um modo próprio de produção da subjectividade, apresenta a sua versão do processo de subjectivação enquadrado na contemporaneidade.
Como aditamento ao homo œconomicus, produzido pelo processo de subjectivação que Foucault denuncia nos regimes biopolíticos, Demichelis apresenta a sua versão da condição subjectiva precipitada pelo aparato tecno-capitalista: o homo technicus. Este particular processo de produção da subjectividade consiste na produção de um sujeito assujeitado e feliz por sê-lo, pois vê-se dotado de sentido mesmo que isso implique, por meio de uma mobilização total, “a indistinção entre vida e trabalho” 18.
6. No sexto capítulo – O tanato-capitalismo e o niilismo da técnica – é sugerida a consumação da vitória da racionalidade calculatória do Ocidente, assente num niilismo – ser para nada – cujo ponto culminante consiste na destruição do meio ecológico que a sustenta, na destruição do meio ambiente.
A concretização do capitalismo como um ser para a morte manifesta-se na sua força destrutiva, na sua potência tanatológica que, num ímpeto de crescimento contínuo, acaba por destruir o contexto – os recursos (de que se serve, as gentes que serve), o planeta – em que assenta. Tal experimento sedutor, que não obriga mas persuade, que não disciplina mas induz e orienta – o capitalismo –, para além de destruir tragicamente a sua possibilidade futura, ele expõe-se – produzindo desemprego, privatizando a assistência social, aumentando as desigualdades entre ricos e pobres e, com isso potenciando a tensão e desarticulação sociais, precarizando e destabilizando os empregados, e fazendo tudo isto alicerçando-se no apoio do Estado – enquanto farsa presente.
Quanto ao emparelhamento desta força apocalíptica, ele dá-se com a técnica – subentendendo-se todos os dispositivos técnicos que funcionam em rede e na rede (internet) –, que funciona sem propósito ou objectivo que não seja o de funcionar (autotelia), criando-se a si própria durante o seu funcionamento (autopoiêsis).
7. Por fim, no sétimo capítulo – Democracia, sociedade, laicidade e técnica –, ponto culminante do seu diagnóstico do presente, Demichelis reafirma, como que responsabilizando cada um de nós pelo contexto em que vivemos, que o poder não está apenas em Wall Street, mas em todos os elementos que validam a rede e o mercado. Assim, só um processo de pensamento selvagem, que rasgue em direcção ao futuro, abrindo-o, pode produzir disrupção desactivando o aparato, o qual deve ser colocado sob tutela, controlo público\comum.
É urgente resgatar a autonomia – em sentido kantiano, isto é, que cada qual seja capaz de ditar a si próprio os imperativos da sua acção – dos grilhões do aparato, quer por via da imaginação, visando a sua potência para desenhar, inventando, linhas de fuga que produzam vidas outras para um mundo outro, quer por via do laicismo, pensado enquanto estratégia de fuga, pois trata-se de um método intelectual e existencial que visa desmantelar a ideologia, a teologia, e qualquer cisma totalizante\totalizadora.
Em nome, nas palavras do autor, “do direito a haver direitos” 19, é necessário que o dissídio, a divergência, a deriva, tomem forma como encontros que preenchem o nosso quotidiano, não como acidentes que caem fora do mapa de acontecimentos possíveis.
Como tudo aquilo que termina pode ser uma oportunidade de recomeço, o último suspiro da obra é ilustrado por uma série de sugestões que poderão funcionar como hipóteses de ruptura, desactivação, do modus vivendi que é endossado pelo aparato tecno-capitalista. Como objectivos prioritários, são apontados: o desmantelamento da flexibilização e precarização do trabalho, assim como da vida; a descolonização do imaginário colectivo da “forma-empresa” e desindustrialização da sociedade; a imposição de um princípio de precaução e de responsabilidade, e uma avaliação do impacto ambiental e social por cada inovação que surja, seja ela técnica ou financeira; a recolocação da lei como vértice mais alto da hierarquia das fontes jurídicas; a nacionalização da banca, finança e indústria; abolição da publicidade enquanto forma de propaganda. Claro que, concomitantemente a estas medidas obrigatórias, juntam-se todas aquelas facultativas que estão por criar, e que tomarão a direcção da laicização da sociedade contra a predominância da religião tecno-capitalista.
III
A recensão crítica aqui elaborada não se pretende substituir à leitura integral do texto de Demichelis cuja relevância, para uma compreensão mais aprofundada da nossa contemporaneidade, é inegável como inegável é, também, a sua pertença a uma tradição de pensamento.
A filiação é, aliás, de uma lealdade a toda a prova. Vejam-se as inúmeras referências à obra de Foucault que perpassam, alinhando quase em decalque, o horizonte teórico foucaultiano com o diagnóstico da contemporaneidade realizado por Demichelis. Seja na caracterização feita do aparato tecno-capitalista enquanto potência para conduzir todos, atendendo às características de cada um, clara recuperação do tema foucaultiano de omnes et singulatim, seja no agenciamento estabelecido entre mercado e técnica que produz um cruzamento entre indivíduo e sociedade, cruzamento que Foucault antecipa por via da sexualidade, entendida como sede de doenças individuais e degenerescência social, articulando à sua maneira o disciplinar com o biopolítico. Mas não só. Também, quando se trata de propor uma alternativa que combata o processo de subjectivação motivado pelo aparato, é ao tema do cuidado de si, tema amplamente estudado por Foucault no fim da sua vida, que recorre. E ainda, restaurando os processos de subjectivação inerentes a cada paradigma de poder, é recuperando e actualizando o homo œconomicus de Foucault, que Demichelis faz surgir o seu homo technicus.
Se o trabalho do pensador consiste em vampirizar, fecundando, as ideias de outros pensadores, criando, não a partir do vazio mas, apanhando os germes dessas ideias as lança noutra direcção, pode dizer-se que, aquilo que recebe de Foucault, Demichelis transforma-o profundamente, não apenas para esculpir os caracteres que organizam o ar do nosso tempo, como para reactivar, propulsionando-se sobre ele, um corpo teórico que se julgava obsoleto. Porém, os limites de Foucault, que Deleuze e a sua prole – Han e Lazzarato – não deixam de notar, são também, trinta anos volvidos sobre a sua morte, ainda os de Demichelis.
Talvez o mais importante resida em ser-se capaz de criar um agenciamento que explore estes dois blocos de pensamento: o bloco-Foucault, aqui prosseguido proficuamente por Demichelis, e o bloco-Deleuze, explorado por Lazzarato e Han. Daí não ser despicienda a anotação de Laura Bazzicalupo, no posfácio desta obra, referindo que o controlo é estabelecido por via do endividamento, de um incitamento à dependência infinita20. Ora, para se fazer uma ontologia do presente, é impossível passar ao lado de um tema tão essencial quanto o da dívida, o qual, não fazendo parte do escopo de análise de Demichelis – talvez por seguir demasiado atrelado a Foucault –, constitui a sua mais notória limitação, a qual não suspende, porém, o indiscutível interesse e riqueza desta obra.
Bibliografia
DELEUZE, G., Conversações, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Fim de Século, 2003.
DEMICHELIS, L., La Religione Tecno-Capitalista: Suddividere, Connettere e Competere. Dalla Teologia politica alla teologia tecnica, Milano: Mimesis, 2015.
FOUCAULT, M., Ditos & Escritos IV: Estratégia Poder-Saber, trad. Vera Ribeiro, 2ª Ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
HAN, B-C., Psicopolítica: Neoliberalismo e novas técnicas de poder, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio d’Água, 2015.
LAZZARATO, M., La fábrica del hombre endeudado: ensayo sobre la condición neoliberal, trad. Horacio Pons, Buenos Aires: Amorrortu, 2013.
1 Demichelis, L., La Religione Tecno-Capitalista: Suddividere, Connettere e Competere. Dalla Teologia Politica alla Teologia Tecnica, Milano: Mimesis Edizioni, 2015.
2 Han, B-H., Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio d’Água, 2015.
3 Id., p. 35.
4 Deleuze, G., Conversações, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Fim de Século, 2003, p. 245.
5 Id., p. 239.
6 Id., p. 240: “São as sociedades de controlo que estão em vias de substituir as sociedades disciplinares”.
7 Lazzarato, M., La fábrica del hombre endeudado, trad. Horacio Pons, Buenos Aires: AAmorrotu, 2013, p. 125: “ cierta ingenuidad política”
8 Ibidem: “crisis, restricción de la democracia y las libertades «liberales» e instalación de regímenes más o menos autoritarios, según la intensidad de la lucha de clases que haya que librar para mantener los «privilegios» de la propiedad privada.”
9 Demichelis, L., Op cit., p. 12.
10 Id., p. 15.
11 Foucault, M., Ditos e Escritos IV: Estratégia Poder-Saber, trad. Vera Ribeiro, 2ªEd., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, pp. 355-385.
12 Demichelis, L., Op cit., p. 24.
13 Id., p. 25.
14 Id., p.66.
15 Id., p. 69.
16 Id., p.89.
17 Id., p.127.
18 Id., p.201.
19 Id., p.239.
20 Id., p.244.