Operaismo e Ecologia-Mundo: para uma teoria política da crise ecológica

[Publicamos a tradução portuguesa do artigo “Autonomist Marxism And World-Ecology: For A Political Theory Of The Ecological Crisis” por Emanuele Leonardi publicada na edição 5/2021 da nossa revista]

Emanuele Leonardi (PT_18/11/2021)*

 

Abstract: This paper aims to articulate an “encounter” between operaismo (WRIGHT 2017 – in English literally “workerism”, but often referred to as “Autonomist Marxism”, from now on AM, highlighting a horizon of worker autonomy from capital) and World-Ecology (MOORE 2014 – from now on WE), that is, between two theoretical paradigms increasingly discussed globally, but until now never juxtaposed (§1). The purpose of the essay is to show that, although the two perspectives relate to the question of the (ecological) crisis in a very different way (§2), they can be effectively integrated if placed in communication on a different level, that of the historical-political analysis of the environmental issue (§3). From this plausible “convergence”—which is actually a rather demanding theoretical exchange, such as to require some renunciation of both positions—a political interpretation of the contemporary ecological crisis can finally emerge. Such interpretation is capable of questioning the relationship between capitalism and nature, avoiding the difficulties of both catastrophism and the elective affinity between the logic of profit and the logic of environmental protection.

Key-words: Autonomist Marxism; World–Ecology; Crisis Theory; Negative Value; Green Economy; Working-Class Environmentalism.

 

Resumo: Este artigo visa articular um “encontro” entre o operaismo (WRIGHT 2017 – também designado como “marxismo autonomista”, doravante “MA”, termo que sublinha um horizonte de autonomia dos trabalhadores relativamente ao capital) e a Ecologia-Mundo (MOORE 2014 – doravante “EM”), ou seja, entre dois paradigmas teóricos cada vez mais discutidos a nível global, mas que, até ao momento, nunca tinham sido justapostos (§1). O objetivo deste ensaio é mostrar que, embora as duas perspetivas se relacionem com a crise (ecológica) de forma muito diferente (§2), podem ser integradas de forma eficaz, se a comunicação entre elas for feita a um nível diferente, ou seja, ao nível da análise histórico-política da questão ambiental (§3). A partir desta “convergência” plausível —na verdade, uma troca teórica bastante exigente, que exige algumas concessões a ambas as posições — pode finalmente vir à luz uma interpretação política da crise ecológica contemporânea. Esta interpretação é capaz de questionar a relação entre o capitalismo e a natureza evitando tanto as dificuldades do catastrofismo, como as afinidades eletivas existentes entre a lógica do lucro e a lógica da proteção ambiental.

Palavras-chave: Marxismo autonomista; Ecologia-Mundo; Teoria da Crise; Valor Negativo; Economia Verde; Ambientalismo da Classe Operária.

 

Introdução – Operaismo e Ecologia-Mundo: elementos para uma definição 

Este artigo visa articular um “encontro” entre o operaismo (WRIGHT 2017 – também designado como “marxismo autonomista”, doravante “MA”, termo que sublinha um horizonte de autonomia dos trabalhadores relativamente ao capital) e a Ecologia-Mundo (MOORE 2014 – doravante “EM”), ou seja, entre dois paradigmas teóricos cada vez mais discutidos a nível global, mas que, até ao momento, nunca tinham sido justapostos (§1). O objetivo deste ensaio é mostrar que, embora as duas perspetivas se relacionem com a crise (ecológica) de forma muito diferente (§2), podem ser integradas de forma eficaz, se a comunicação entre elas for feita a um nível diferente, ou seja, ao nível da análise histórico-política da questão ambiental (§3). A partir desta “convergência” plausível —na verdade, uma troca teórica bastante exigente, que exige algumas concessões a ambas as posições — pode finalmente vir à luz uma interpretação política da crise ecológica contemporânea. Esta interpretação é capaz de questionar a relação entre o capitalismo e a natureza evitando tanto as dificuldades do catastrofismo, como as afinidades eletivas existentes entre a lógica do lucro e a lógica da proteção ambiental.

O MA pode ser definido da seguinte forma: de um ponto de vista histórico, a elaboração do operaismo está estreitamente ligado ao ciclo de conflitos das décadas de 1960 e 1970 em Itália. Neste contexto, deverão ser mencionados algumas revistas e grupos políticos: Quaderni Rossi, Classe Operaia e Rosso, quanto às revistas; e Potere Operaio e Autonomia Operaia, quanto aos grupos políticos. De uma perspetiva metodológica, a opção operaista desenvolve-se em quatro passos: a parcialidade do ponto de vista, a unidade constitutiva de pensamento e conflito, a ambivalência da condição da classe operária (força de trabalho/trabalho abstrato dentro do capital, classe operária/trabalho vivo contra o capital) e a centralidade da composição de classe (FILIPPINI e TOMASELLO 2010). Em último lugar, de um ponto de vista político, as duas principais inovações do MA foram a prática da recusa do trabalho, teorizada, entre outros, por Sergio Bologna e Antonio Negri (que desenvolverei mais adiante) e a revolução copernicana elaborada por Mario Tronti, segundo o qual a luta de classes aparece primeiro, seguindo-se a organização capitalista (instituindo, por conseguinte, uma relação causal e progressiva entre a agitação operária e o desenvolvimento capitalista).

Por fim, deve sublinhar-se a modalidade específica através da qual, a partir da década de 1990, um segundo momento da reflexão operaista «territorializa a filosofia francesa contemporânea no campo do oltremarxismo italiano» (CHIGNOLA 2015: 32), em particular a questão da biopolítica conforme foi apresentada por Michel Foucault. A caixa de ferramentas de Foucault, especialmente a noção de governamentalidade neoliberal é mobilizada pelo oltremarxismo para questionar o aparecimento, desde a crise dos modelos de Estado-Providência sociais-democratas, de uma nova estratégia de acumulação capitalista baseada: 1. na centralidade da esfera da reprodução; 2. na financeirização da economia; e 3. na cognitização do trabalho (FUMAGALLI, GIULIANI, LUCARELLI e VERCELLONE 2019). O ponto de confluência histórico em que o pós-operaismo entra em tensão com o conceito de crise é, por conseguinte, bidimensional: por um lado, o colapso da dinâmica social que tinha suportado os designados «Trinta Anos Gloriosos (1945-1975) do Capitalismo»; por outro lado, os elementos de destruição “criativa” da sociedade que, a partir da década de 1980, caracterizam de forma crescente o projeto hegemónico do neoliberalismo. De passagem, deve ser dito que ambas as transformações, e a relevância da respetiva crítica, foram analisadas de forma exaustiva pelas correntes mais atentas da ecologia política (PELLIZZONI 2019).

No que diz respeito à EM, a principal referência da discussão global (LEONARDI-PELLIZZONI 2019) é representada por Jason Moore, um sociólogo marxista conhecido sobretudo por ter desenvolvido a análise do sistema-mundo proposta por Giovanni Arrighi e Immanuel Wallerstein na direção de um tratamento em profundidade das questões ambientais. Tal conduziu à ecologia-mundo, uma proposta de acordo com a qual o capitalismo não tem um regime ecológico, mas é ele próprio um regime ecológico, isto é, uma forma específica de organizar a natureza. Para lá de qualquer resíduo de dualismo cartesiano, o conceito de ecologia-mundo refere-se a uma combinação original de dinâmicas sociais e elementos naturais que compõem o modo de produção capitalista no seu desenvolvimento histórico, na sua tendência para se tornar um mercado mundial. Neste quadro, a teoria capitalista do valor impõe o espaço como plano e geométrico, o tempo como homogéneo e linear, a natureza como externa, infinita e gratuita.

Em particular, a noção de natureza social abstrata permite-nos compreender melhor as condições específicas através das quais a “natureza” é internalizada no processo de valorização como um limite de possibilidade, que é ao mesmo tempo invisível — isto é, embora a “natureza” seja uma condição que o capital e o trabalho assalariado têm necessariamente de cumprir, não é um fator diretamente envolvido no ato de criação de valor. Moore identifica a transição epocal da terra para o trabalho como fonte primária de produtividade, que teve lugar durante o longo século xvi, como condição sine qua non para a internalização da natureza como valor. O que é que isto significa? Significa que, para a valorização ocorrer, as atividades vitais de que a natureza é uma expressão devem ser transformadas de forma a conformarem-se à lógica do valor. Emerge assim um quadro que, em termos esquemáticos, pode ser resumido da forma seguinte: o trabalho social abstrato — isto é, a força de trabalho assalariada organizada pelo capital em unidades de tempo de trabalho discretas e mensuradas — é a única fonte de valor, localizada na esfera da produção. No entanto, para os mecanismos da criação de valor (que Moore define como a área de mercantilização ou acumulação por capitalização) serem postos em movimento, é necessário que uma grande quantidade de trabalho não pago (e, por conseguinte, não assalariado) seja disponibilizado ao capital. Moore designa este movimento “acumulação por apropriação”: define a esfera da natureza social abstrata, para a qual convergem elementos tradicionalmente relegados para a esfera da reprodução (trabalho doméstico, trabalho escravo e “ofertas gratuitas” do ambiente). É importante repetir que estes sujeitos da reprodução apenas podem funcionar como uma condição de valor se forem “contabilizados” como infinitos e gratuitos (mais uma vez: possibilitantes, mas, ao mesmo tempo, invisíveis). Para resumir:

As técnicas capitalistas procuram mobilizar e apropriar as “forças da natureza” (não pagas), da mesma forma que procuram tornar produtivas as “forças de trabalho” (pagas) na sua forma moderna (a produção de mais-valia). Tal é o significado do conceito de produção da natureza; a natureza não é um objeto que se apresente já previamente formado para o capital, mas uma rede de relações que o capital remodela de modo a aumentar o contributo do “trabalho” biosférico não pago para a acumulação do capital. Ao fazê-lo, o capital é remodelado pela natureza como um todo. (MOORE 2014: 295)

Um bom exemplo da estratégia argumentativa de Moore é representado pelo carvão: através da EM é possível reconstruir de forma exata a forma como as relações sociais que surgiram desde o início do século XVI transformaram o carvão, de uma simples rocha, num combustível fóssil, bem como o conjunto de conhecimentos biológicos, físicos e geológicos necessários para tornar o próprio conceito de “combustível” concebível/utilizável. Segue-se que o desenvolvimento da produção com base no carvão teria sido inconcebível sem as relações de valor estabelecidas no início da modernidade: «o preconceito do materialismo verde diz-nos que o “carvão mudou o mundo”. Mas não será a formulação inversa mais plausível? Novas relações de mercadorias transformaram o carvão (ativando ao mesmo tempo o seu poder epocal)» (MOORE 2017: 53-54).

 

Colapso ou desenvolvimento? Leituras constratantes da teoria da crise (a começar por Marx) 

Embora tanto o MA como a EM estabeleçam uma relação constitutiva com o pensamento de Marx, os resultados alcançados pelas duas teorias — particularmente no que diz respeito ao conceito de crise — são distantes. Afinal de contas, o próprio pensamento de Marx a este respeito é, ao mesmo tempo, simples e problemático. Simples, porque não há dúvida que a crise torna visíveis, em termos concretos, tanto as contradições do capitalismo, como os limites intrínsecos do desenvolvimento do capital. Problemático, porque se verifica a coexistência de uma pluralidade de perspetivas diferentes; creio que é necessário mencionar pelo menos três: a crise da exaustão do exército industrial de reserva, a crise da sobreprodução e a crise da realização da mais-valia (BELLOFIORE 2012). Além do mais, estas crises estão instaladas numa tensão insolúvel e fundamental entre o elemento revolucionário da análise — que pretende derrubar a sociedade burguesa — e o elemento científico — que visa descrever de forma exata como funciona o sistema (COLLETTI 1970). Para resumir em apenas algumas linhas um debate muito vasto, pode afirmar-se que o ponto comum de todos os marxismos reside no caráter necessário da crise para a dinâmica de expansão do capitalismo — que surge, precisamente, como um modo de produção volátil, “forçado” por uma lógica férrea interna a revolucionar e a transformar as bases da sua própria acumulação — enquanto as diferenças se focam tanto nas causas económicas (oferta excessiva ou procura insuficiente?) e nos resultados políticos (colapso ou desenvolvimento?).

Na comparação que propomos neste artigo entre MA e EM, a atenção foca-se no segundo aspeto em disputa. O operaismo inicial e a subsequente análise biopolítica da produção, em que teria sido alcançada a subsunção total da sociedade (e não do trabalho) pelo capital, consideram a crise como um fator de desenvolvimento (inicialmente) e de governança do desenvolvimento (subsequentemente). Afinal, este é um ponto de chegada coerente tanto para a revolução copernicana de Tronti, em que as lutas da classe operária antecedem a restruturação do capitalismo, como para a inversão foucaultiana da relação entre poder e resistência, em que a última se torna uma força afirmativa e o primeiro se torna uma força reativa. Numa carta de Tronti a Raniero Panzieri datada de 30 de junho de 1961 já se podia ler:

O problema do desenvolvimento do capitalismo não pode ser separado do problema das crises. Por este facto – a crise é um momento do desenvolvimento capitalista […] A análise da crise apenas pode ser uma análise dinâmica do sistema, ou seja, a análise das dinâmicas do sistema. Daí a impossibilidade de se pensar a crise final nos termos de um colapso catastrófico. Quanto mais pensamos no assunto, mais nos convencemos de que o nó a resolver está hoje todo aqui – neste matrimónio difícil entre o desenvolvimento capitalista e a revolução operária […] É precisamente desta união material que tem de nascer a nova experiência socialista. (TRONTI in TROTTA-MILANA 2008: 118)[1]

O núcleo essencial da análise de Tronti é proposto e alargado por Negri num ensaio escrito originalmente em 1968 e intitulado Marx sul ciclo e la crisi (em português, Marx sobre o ciclo e a crise). O caráter notável desta reinterpretação da teoria das crises efetuada por Negri pode deduzir-se dos comentários elogiosos de um crítico noutros aspetos impiedoso como Riccardo Bellofiore, que a definiu, inicialmente, como sendo «de considerável alcance e profundidade» (BELLOFIORE 1982: 102) e, mais tarde, «a seu modo, brilhante» (BELLOFIORE 2008: 299). Basicamente, Negri acredita que a reflexão de Marx é adequada ao capitalismo do século XIX. No entanto, o horizonte da década de 1960 é marcado pela «completa restruturação das relações de poder» impostas pela Revolução de Outubro, a que o capital respondeu, primeiro, com o New Deal, ou seja, com a integração da classe trabalhadora no mecanismo de desenvolvimento do capitalismo e, depois, com o pacto Fordista, incorporado no Estado-Providência (NEGRI 1972: 199). Neste contexto, a crise deixa de ser o outro do desenvolvimento, para passar a revelar-se como o seu elemento essencial. Com efeito, é apenas através da crise «que o lucro surge como uma figura geral do capitalismo, ou seja, como a verdadeira face do funcionamento da lei do valor» e é apenas o discurso sobre a necessidade da crise que «oferece ao sistema uma figura de compreensão profunda da realidade» (NEGRI 1972: 202). Com estes pressupostos, e num ponto posterior ao New Deal (ou seja, posterior à perspetiva de Tronti), Negri pode focar a atenção no nexo crise-desenvolvimento, na sua forma Fordista plenamente acabada, através de John Maynard Keynes e, sobretudo, Joseph Alois Schumpeter:

Em Keynes, o momento central da análise refere-se à promoção do desenvolvimento como ritmo de agregação das forças de produção social; em Schumpeter, o momento central da análise consiste na revelação de que a […] agregação apenas pode ter lugar com a condição de se relacionar com a contínua desagregação e reforma do processo. No primeiro, o desenvolvimento pretenderia ser uma alternativa à crise; no segundo, o desenvolvimento é uma figura totalmente nova do ciclo, incluindo a crise e utilizando-a em função do curso cíclico. No entanto, os dois momentos são complementares: são integrados na necessidade de utilizar a pressão de massas da classe trabalhadora e de a controlar e reduzir de forma rígida nos elos do processo dinâmico de desenvolvimento. Oferecem uma clareza singular às práticas capitalistas mais recentes. (NEGRI 1972: 203)

A rejeição categórica de qualquer teoria do colapso e a tentativa de compreender o conceito de crise a partir da conjuntura histórica podem ser observados na análise da crise financeira de 2007-2008 efetuada pelo pós-operaismo. Em particular, parecem-nos significativos três pontos: 1. trata-se de um novo tipo de crise: embora a financeirização não seja, de forma alguma, um fenómeno novo (por exemplo, os artigos de Marx para o New-York Daily Tribune no final da década de 1850 oferecem uma excelente análise da especulação financeira), a sua centralidade e pervasividade atuais tornam obsoleta a oposição entre economia real e economia financeira. Isto não significa que a primeira tenha sido absorvida pela segunda. Antes sugere que os dois elementos têm de ser pensados como distintos e,ao mesmo tempo, inseparáveis. Não são a mesma coisa, mas perdem o seu significado como categorias de interpretação fora da sua relação mútua. (MEZZADRA-FUMAGALLI 2009); 2. a finança desempenha um papel produtivo e não parasitário: «Esta crise não é simplesmente o resultado da locura financeira, mas deve antes ser compreendida como decorrente das especificidades do regime de acumulação existente» (LUCARELLI 2009: 101). A finança está envolvida de forma direta e ativa na produção de mais-valia e, por conseguinte, esta crise é, na sua essência, ao mesmo tempo financeira e real; 3. a finança é a pedra angular da governamentalidade neoliberal: para os mercados financeiros poderem controlar a produção de mais-valia a um nível global, é necessário que fatias cada vez maiores da população dependam da mesma. Esta dependência manifesta-se e atua através de várias formas de crédito, prestações sociais e efeitos riqueza. Como resultado, a «financeirização [é] a forma atual do domínio capitalista» (NEGRI 2009: 231). Mais de dez anos após a explosão da bolha do subprime, e na ausência de sinais de recuperação económica, o pós-operaismo continua a defender a primazia do nexo crise-desenvolvimento, mas articula-o em redor de dois pólos diferentes. O primeiro, proposto por Dario Gentili, recupera o conceito gramsciano de interregno para mostrar como o ponto de bloqueio da dinâmica do capitalismo biopolítico não se destina a ser resolvido, mas pode, ao invés, prosseguir indefinidamente, numa espécie de suspensão entre a vida e a morte (GENTILI 2018). O segundo, articulado por Negri e Michael Hardt, volta a propor a centralidade do elemento de rutura política (já não pela classe trabalhadora, mas agora pela multidão), defendendo que «os antagonismos constitutivos da produção social, cooperativa e cognitiva surgem no interior do capital financeiro e atingem o núcleo dos seus mecanismos de extração» (NEGRI-HARDT 2018: 269). Além do mais, não deve ser subestimado o enorme impacto ambiental do regime de acumulação impulsionado pela finança: um exemplo paradigmático, mas certamente não exclusivo, é a relação constitutiva entre especulação financeira e usurpação de terras – land grabbing – (FAIRBARN 2014; BENEGIAMO 2021).

No que diz respeito à EM, a sua contribuição fundamental consiste em sublinhar a dimensão ecológica da teoria da crise. Em primeiro lugar, Moore faz remontar a Marx a análise de um ponto ambiental de bloqueio da dinâmica capitalista: as crises de subprodução (da «natureza generosa e gratuita», para recordar a formulação de Ricardo). Dada a necessidade de a acumulação incorporar uma parte cada vez maior de atividade natural barata e trabalho humano não pagos para manter o «pressuposto estrutural do aumento da composição do valor do capital» (AVALLONE 2015: 19), segue-se que cada ciclo de desenvolvimento se depara, intrinsecamente, com uma «tendência para a redução da mais-valia ecológica» (MOORE 2014: 108), ou seja, do rácio entre a massa total de capital e a parcela de natureza e trabalho não pago. Isto depende do facto de «a taxa de lucro aumentar ou diminuir na proporção inversa do preço da matéria-prima» (MARX 1973: 146), que tende a aumentar com a redução da oferta de natureza e trabalho grátis devido à aceleração das taxas de acumulação. Por conseguinte, a crise de subprodução (de uma natureza “grátis”) revela a dimensão ecológica das crises de superprodução (de mercadorias).

Em segundo lugar, a EM oferece uma reconstrução convincente da sucessão histórica das ondas longas dos ciclos económicos precisamente através desta articulação da subprodução e da superprodução. Não temos espaço neste artigo para discutir a transição do longo século xvi “Holandês” para o longo século xviii “Britânico” e a sucessão da hegemonia dos Estados Unidos da América no longo século xx. Vamos assim focar-nos no último ciclo de produção e esgotamento de natureza barata. Tal permite-nos, por um lado, detetar uma identidade substancial com a periodização da abordagem do MA e, por outro lado, sublinhar a persistência na EM de uma atitude, em última análise, “colapsista”, embora diferente da sua forma “clássica” (ou seja, a que esteve presente no debate da Segunda Internacional entre o século xix e o século xx).

Em relação ao primeiro aspeto, Moore situa na primeira metade da década de 1930, nos Estados Unidos (ou seja, em conjunção com o New Deal), a raiz profunda da Revolução Verde enquanto processo de inovação das práticas agrícolas (baseado em grande parte na extensa utilização de pesticidas e adubos industriais), que levou a um aumento global significativo dos rendimentos entre as décadas de 1940 e 1970[2]. A partir da declaração de Nixon do fim da convertibilidade do dólar em ouro, em 1971, e o primeiro choque petrolífero de 1973 (dois eventos-chave da interpretação operaista do declínio do Fordismo), a produtividade agrícola estagnou e, com ela, também a produção de natureza barata. De acordo com a análise de Moore, a retórica das biotecnologias “verdes”, que teria suportado a transposição financeira de produtos alimentares, revela toda a sua inconsistência com a crise de 2003 (parente muito próximo do colapso das dot-coms em 2001; ambas acabariam por confluir para a grande recessão iniciada em 2007-2008). Também neste ponto a periodização da EM e do MA coincidem. Além disso, a EM oferece um contraponto ecológico instrumental à leitura sociocêntrica do MA através da noção fundamental de valor negativo — o elemento mais inovador da análise de Moore para a teoria da crise no contexto neoliberal. Escrevendo sobre “a transição da mais-valia para o valor negativo”, este autor observa que:

Nesta transição, as “antigas” contradições relativas ao esgotamento dos recursos juntam-se às “novas” contradições relativas aos resíduos e à toxificação. O antigo modelo produtivista (a lei da Natureza Barata) tem sido especialista em encontrar soluções para o esgotamento dos recursos. Mas ainda é inadequado ao lidar com o valor negativo, ou seja, com aquelas formas de natureza que iludem e frustram as soluções da Natureza Barata. As ervas daninhas muito resistentes aos pesticidas (“superweeds”) são claramente representativas desta tendência. Atualmente apenas podem ser controladas com uma grande toxificação e um custo muito elevado. Entretanto, a toxificação direta e indireta da agricultura capitalista influencia, com cada vez mais força, o desenvolvimento de novas formas de valor negativo: alterações climáticas, epidemia de cancro, e assim por diante. (MOORE 2015: 274-275)

Tendo sido estabelecida uma proximidade em termos de periodização, apresentamos agora uma importante divergência diretamente relacionada com o problema do resultado da crise, ou seja, a alternativa colapso-desenvolvimento. Embora sui generis, parece-nos que a reflexão de Moore volta a propor os elementos essenciais do debate sobre o “colapso”; dois autores com influência nos trabalhos da EM parecem-nos ser Rosa Luxemburgo (2012) e Henryk Grossman (2010). É certo que Moore não recorre ao estilo clássico da «versão verde-vermelha da teoria do colapso», cuja característica fundamental é a substituição da anarquia do mercado pelos limites físicos como contradição insanável do capitalismo (BELLOFIORE 1988: 21). Na sua análise, a questão da finitude ambiental não surge como uma “segunda” contradição, isto é, a par da “primeira”, entre capital e trabalho assalariado (O’CONNOR 1989), nem como uma acumulação de catástrofes (BELLAMY FOSTER 2011). Pelo contrário, aparece como uma variável dependente da produção da natureza como recurso externo, infinito e gratuito. No entanto, a sua estratégia discursiva segue a estratégia de todas as teorias do colapso desde o debate “clássico”. Por conseguinte, visa mostrar que, embora as crises do século XX tenham sido crises de desenvolvimento (ou seja, alimentaram a restruturação do capitalismo a um nível superior), a crise que atravessamos apresenta-se como epocal, no sentido em que o seu resultado é considerado como um colapso inevitável. Esta atitude pode ser facilmente vista tanto na identificação de uma forma de uma crise de subprodução sem precedentes, que, com o advento do neoliberalismo se torna a «lei geral da superpoluição» (MOORE 2015: 271) — ou seja, a tendência para esgotar cada vez mais, e cada vez mais rapidamente, as fronteiras dos resíduos[3] — e na frequência de declarações vagamente apocalípticas como « A mudança para a financeirização e a capitalização cada vez mais profunda da esfera da reprodução têm sido uma forma poderosa de adiar o inevitável ricochete. Mas durante quanto tempo mais?» (MOORE 2015: 305).

 

Genealogia operária da questão ambiental e centralidade política da crise ecológica 

Até este ponto, tentámos descrever uma sobreposição “simples” entre o MA e a EM, em que o primeiro apresenta um contexto correto do aspeto social da teoria da crise, enquanto o último revela a sua dimensão ambiental subjacente. Trata-se certamente de um primeiro passo necessário, em termos analíticos, pois incorpora, tanto o elemento antagonista implicado pelas lutas, crucial para o MA, como a perspetiva “capitalocêntrica” da EM. Procuramos assim manter unidas a dimensão objetiva e a dimensão subjetiva, com vista a uma avaliação do capitalismo contemporâneo, pressupondo a possibilidade de um colapso e de uma reorganização imprevisível, sem tomarmos nenhuma das opções por garantida. No entanto, o nosso argumento requer um passo adicional, pois a mistura de abordagens alternativas ao mesmo nível de análise representaria uma contradição. Por conseguinte, tentaremos enquadrar a articulação entre MA e EM ao longo de linhas discursivas diferentes, mas que se intersectam — linhas que, para serem traçadas, requerem não só o reconhecimento prévio do carácter não auto-suficiente de ambas as perspetivas, como a sua renúncia mútua a alguns dos seus pressupostos fundacionais.

Em primeiro lugar, é necessário questionar a forma como a crise ecológica se torna, na viragem das décadas de 1960 e 1970, um problema político no sentido próprio do termo, isto é, inevitável para todos os intervenientes, e a todas as escalas. Deve ser feita aqui uma distinção importante entre degradação ambiental, cujos exemplos se podem encontrar em todas as épocas e sociedades, e crise ecológica, que tem a sua causa direta na forma de organização do trabalho do capitalismo, que depende da necessidade de acumulação e crescimento que caracteriza a motivação pelo lucro. Neste contexto, é necessária uma especificação ulterior: embora seja habitual datar a politização generalizada das questões ambientais em meados da década de 1970 e na década seguinte (DELLA VALENTINA 2011), ou seja, após o grande ciclo de conflitos fordistas, nos últimos anos tem sido testada uma hipótese diferente e mais radical. Nesta perspetiva, esta politização ocorreu não só uma década antes, mas também, e sobretudo, graças às lutas do movimento operário, e não apesar delas (LEONARDI 2017a), tanto o movimento operário “oficial” como o “revolucionário” (RECTOR 2014; CITONI-PAPA 2017; DAVIGO 2017). Stefania Barca sugere o termo sugestivo de “ambientalismo operário” para descrever a formação de um conhecimento militante sobre o ambiente do trabalho que se recusou a ser ignorado ou ameaçado: «O local de trabalho era visto como um tipo particular de ecossistema, e a classe trabalhadora era quem melhor o conhecia» (BARCA 2011: 103; Barca 2020). Com efeito, as lutas contra a nocividade[4], que se multiplicaram entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970, frequentemente em oposição às confederações sindicais, são as primeiras a criticar ferozmente a designada “monetização do risco”, ou seja, a ideia de que aumentos salariais e/ou benefícios organizacionais podiam “compensar” a exposição a poluentes (MILANACCIO-RICOLFI 1976; SACCHETTO-SBROGLIÒ 2009). Claro que esta critica nunca se tornaria dominante na ação dos sindicatos, cujo legado no final da década de 1970 deverá ser considerado «bastante negativo», pois «a introdução de medidas de segurança ligeiramente melhores» foi «subordinada às políticas implementadas periodicamente pelas empresas» (DAVIGO 2017: 176). Mas tal não permite negar que foi, em primeiro lugar, a força das organizações dos trabalhadores que demoliu o mecanismo compensatório e (im)pôs a questão ecológica como inevitável. O movimento ambientalista apenas surgiria numa fase posterior, juntamente com uma sensibilidade pós-materialista junto dos estratos intermédios urbanizados (INGLEHART 1997).

Parece-nos poderem ser adicionados dois elementos a esta descrição: o primeiro é o facto de as lutas contra a nocividade do ciclo de 1968-1973 (localizadas no trabalho social abstrato) não teriam tido o impacto disruptivo que, de facto, tiveram, se não estivessem ligados a conflitos mais amplos que, naquele período, garantiram a centralidade sem precedentes de sujeitos da esfera da reprodução (localizados na natureza social abstrata). Feminismo, movimentos de descolonização, movimentos ambientais de base popular: estes excluídos do Estado-Providência social-democrata trouxeram, ao nível social, de lutas qualitativas, o potencial político da crise ecológica desocultado pelo movimento dos trabalhadores. No entanto, este último não conseguiu exprimir uma estratégia unitária a este respeito: pelo contrário, à época, emergiu uma tensão entre as perspetivas de emancipação do trabalho, apoiadas, por exemplo, por Bruno Trentin, secretário da Federação Italiana dos Operários Metalúrgicos (FIOM, no acrónimo italiano), e por setores do Partido Comunista Italiano, e as perspetivas de libertação ou recusa do trabalho, apoiadas por organizações operaistas (Potere Operaio inicialmente, Autonomia Operaia mais tarde). Ambas as opções situam a sua análise a jusante do nível salarial, configurando-se, por conseguinte, como críticas da lógica do valor (de troca) – operam aquilo que Karl Heinz Roth define como «ultrapassagem das lutas salariais» (2009: 152). No entanto, as duas posições têm horizontes diferentes, que não são facilmente reconciliáveis. A primeira considera possível “redimir”, por assim dizer, o trabalho assalariado em nome do trabalho num sentido genérico, enquanto atividade humana em que o indivíduo exprime a sua personalidade autêntica. Seria uma questão de desalienar o trabalho assalariado através do controlo do processo de produção pelos trabalhadores, de forma a que a singularidade irredutível de cada trabalhador se pudesse desenvolver (BARCA 2017). Por outro lado, a segunda opção advoga a recusa do trabalho[5] enquanto atividade imposta pelo capital. Esta rejeição destina-se não só a fazer uma crítica radical do trabalho assalariado (trabalho-fadiga, trabalho-emprego, trabalho expropriado), mas, sobretudo, a abolir o valor “tout court”, reafirmando a lógica da riqueza (baseada no valor de uso) através de palavras de ordem como “redução das horas de trabalho”, “redução dos ritmos de trabalho”, “recusa da toxicidade pelo direito à saúde”, e “salários iguais para todos” (e separados da produtividade).

De acordo com Nanni Balestrini e Primo Moroni (2005), a incapacidade de reconciliar estas duas opções (e nós acrescentamos, a incapacidade de as associar de forma mais estreita às lutas dos sujeitos de reprodução) levou à derrota do ciclo de lutas de 1968-1973. Em vez do poder dos trabalhadores sobre a composição qualitativa da produção, verificou-se uma reação muito violenta do capital: a destruição do trabalho (e das suas organizações), o desmantelamento do Estado-Providência e a financeirização acelerada. No entanto, deve notar-se que a derrota da “época dos movimentos” revestiu uma forma peculiar. No impulso das lutas, verificou-se, de facto, uma alteração na estrutura da valorização capitalista na direção da ampliação da sua base de acumulação. As causas desta transição devem ser procuradas na intersecção entre a financeirização da economia, a cognitização do trabalho e, acima de tudo, no facto de a esfera da reprodução social se ter tornado produtiva. Noutras palavras, a transição deve ser lida como uma tentativa de o capital transformar o seu ponto de bloqueio numa força de desenvolvimento. Com efeito, que outra coisa é a economia verde se não a tentativa de internalizar o constrangimento ambiental, transformando-o, de uma barreira, numa oportunidade de negócios através da criação de mercados ad hoc? Por outras palavras, a economia verde postula uma afinidade eletiva entre a lógica do lucro e a lógica da proteção ambiental, sendo esse o núcleo da “revolução a partir de cima” que pôs em movimento[6]. O historiador operaista Sergio Bologna compreendeu este elemento-chave já em 1988; na verdade, tratava-se apenas de uma intuição, mas uma intuição muito relevante, especialmente se lida em retrospetiva. Num artigo para o jornal Primo Maggio, Bologna escreveu que o «Capital precisa do ambientalismo para alcançar a fronteira de uma nova revolução industrial» (1988: 8).

No entanto, tal não significa que a crise tenha sido resolvida com facilidade por um estádio superior do desenvolvimento capitalista. Se fosse esse o caso, a economia verde funcionaria de forma perfeita, enquanto todos os dados, incluindo os dos adeptos mais entusiastas, mostram o contrário (Ronchi 2018): uma contradição clara entre o (putativo) objetivo ecológico e os (efetivos) meios económicos dos mercados ambientais. Com efeito, embora não tenham sido efetuadas melhorias ecológicas, foi criado um montante significativo de dinheiro, que foi depois transferido para empresas com um grande consumo de combustíveis fósseis através do que se poderia designar uma renda climática.[7] Claro, pode defender-se que, para resolver o impasse, seria suficiente reverter os termos da contradição e, assim, privilegiar o objetivo ecológico face aos meios económicos. Mas é precisamente neste ponto que a tensão insanável da economia verde se revela e pode ser avaliada na sua totalidade. Para ter sucesso, a economia verde teria de renunciar ao crescimento/acumulação (a reprodução tornada produtiva já não pode ser concebida como subordinada, infinita e gratuita). No entanto, como a os pressupostos de acumulação/crescimento são a própria razão de ser da economia verde, tal não é possível. Por conseguinte, parece razoável afirmar que, num regime de acumulação movido pela finança, dependente de uma infraestrutura digital e caracterizada pelo facto de a reprodução social se ter tornado produtiva, o significado político da crise ecológica é um facto incontestável (TORRE 2020).

 

Observações finais: Uma nova perspetiva baseada no MA e na EM

Neste contexto, sugerimos um “encontro” de maior profundidade entre o MA e a EM. A crise atual, sendo a primeira em que a questão ecológica assume pleno significado político, apresenta-se simultaneamente como uma crise de desenvolvimento e uma crise de antidesenvolvimento. Moore deteta claramente o segundo aspeto através do conceito de valor negativo, que exprime de forma correta a mensagem de que as alterações climáticas, emergências sanitárias e o estreitamento das fronteiras dos resíduos tornam a crise ecológica uma realidade quotidiana sem precedentes na história do capitalismo. Com efeito, o valor negativo implica uma contradição interna da dinâmica do capital e, acima de tudo, um desafio ontológico ao projeto de valorização e, por conseguinte, à “civilização capitalista” tout court (MOORE 2015: 278). No entanto, Moore não tem razão em considerar este impasse como necessário: «o trabalho não pago pode ser (e é frequentemente) medido (por exemplo, em “serviços ambientais”); mas não pode ser valorizado» (MOORE 2015: 300).

A questão que escapa à EM, e que na minha opinião pode ser compreendida através do MA, é que a lógica do valor, não está, de forma alguma, «dependente do dualismo» (MOORE 2015: 292). O facto de a acumulação do capital, até à década de 1970, ter assentado na separação ilusória entre sociedade interna e natureza externa (infinita e gratuita) não implica necessariamente que precise de assentar nesta descrição dualista da realidade para funcionar. Focando-se em projetos de ponta da economia verde, Luigi Pellizzoni mostrou de forma correta como a indeterminação pós-dualista que caracteriza tanto a geoengenharia, como a biotecnologia não representam um obstáculo ao desenvolvimento do capital;atua antes como premissa de um «novo domínio da natureza» (PELLIZZONI 2019: 11).[8] Por outras palavras, verifica-se uma mudança da retórica dos limites de crescimento, que aludia de certa forma à toxicidade ambiental como uma crise do capitalismo, para uma retórica de crescimento dos limites, que identificou estes últimos como motores de acumulação, como “filtros” que transformam o constrangimento ecológico numa crise do capitalismo (PELLIZZONI 2018).

Além do mais, é possível defender que as mercadorias comercializadas nos mercados ambientais contêm valor, no sentido em que são produzidas por unidades de trabalho híbridas (reprodutiva/informacional) e natureza (financeirizada) (LEONARDI 2019). No entanto, o desenvolvimento potencial desta economia verde pós-dualista deverá ser também relativizado. Não só porque “do facto de que o capital põe cada um destes limites como uma barreira e depois os transpõe idealmente, não significa que os tenha realmente ultrapassado” (MARX 2012: 274), mas também, e sobretudo, porque o processo de otimização da atividade “gratuita” da natureza parece, pelo menos até ao momento, incapaz tanto de “reparar” os danos ambientais já causados, como de oferecer proteções sociais generalizadas potencialmente capazes de compensar a polarização das classes que invariavelmente acompanha a multiplicação dos dividendos financeiros. O que falta ao capitalismo neoliberal — pelo menos até ao momento — é um mecanismo inclusivo capaz de (parcialmente) socializar os lucros financeiros, através de uma descarbonização da economia ou através da formação de uma nova classe média (ou ambos). Uma boa forma de captar esta fricção é indicada por André Gorz que, numa das suas últimas entrevistas, define o crescente divórcio entre valor e riqueza da seguinte forma:

Produzir e produzir cada vez mais e mais não representa assim qualquer problema […] O problema é a brecha, que aumenta cada vez mais, entre a capacidade de produzir e a capacidade de vender com lucro, entre riqueza produzível e a forma da mercadoria, a forma de valor que a riqueza deve necessariamente desempenhar para ser produzida no quadro do sistema económico em vigor. (GORZ 2008: 136)

Desta fricção – que se tem aprofundado também do ponto de vista ecológico e, por conseguinte, sem surpresa, tem sido abordada nos anos recentes por pensadores associados ao MA (VERCELLONE ET AL., 2017) – não decorre a impossibilidade de mercantilizar a natureza de formas diferentes das tipicamente dualistas que a modernidade conheceu até o declínio do Fordismo. Decorre “apenas” a dificuldade de o capitalismo neoliberal construir uma arquitetura institucional capaz de produzir ao mesmo tempo lucros financeiros e redistribuição dirigida ao consenso social. Nem teoria do colapso nem automatismo crise-desenvolvimento; somos deixados, simplesmente, com uma certeza antiga, que é proposta com uma nova forma, ou seja, «a de que o capitalismo nem colapsa mecanicamente nem sai de si mesmo de forma evolucionista, e que, por conseguinte, a sua ultrapassagem não é concebível a não ser com base numa intervenção política» (NAPOLEONI 1970: LXX). É óbvio que a forma desta intervenção terá de ter em consideração tanto os mecanismos de valorização do capital globalizado, como as relações entre as classes existentes no interior do mesmo. A análise deste último aspeto exigiria um novo artigo. No entanto, podem ser indicados três elementos como caminhos para uma futura pesquisa. Em primeiro lugar, colocar a discussão sobre a crise entre parêntesis, evitando assim tanto a “inclinação para o colapso” como a “inclinação para o desenvolvimento”— poderia permitir aos sujeitos transformadores focar a sua atenção teórico-prática nos elementos desejáveis da transição ecológica. Em segundo lugar, é necessário questionar a relação entre a extrema localização dos conflitos ambientais e a escala global dos efeitos da crise, por exemplo, das alterações climáticas, construindo uma ponte entre a autonomia popular de base a configuração da ecologia como um espaço mais amplo para a recomposição política (TORRE 2018). Por fim, será decisivo estabelecer uma associação inextricável entre a transição ecológica das infraestruturas económicas e as lutas de classes do século XXI: são essas as duas faces da mesma moeda, pois a luta contra a desigualdade é o primeiro objetivo de qualquer conflito ambiental digno desse nome.

 

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Notas de rodapé: 

* Tradução de Rui Martinho. Artigo original em inglês: E. Leonardi, Autonomist Marxism And World-Ecology: For A Political Theory Of The Ecological Crisis, projectpppr.org, online, 18 march 2021: URL: https://projectpppr.org/pandemics/autonomist-marxism-and-world-ecology-for-a-political-theory-of-the-ecological-crisis

[1] Agradeço a Michele Filippini ter-me informado da existência desta carta.

[2] Harry Cleaver argumentou de forma convincente que a Revolução Verde deve ser interpretada como um «esforço do pós-guerra destinado a conter as revoluções sociais e a salvaguardar o lucro mundial» (1972: 177). Por outras palavras, Cleaver coloca a hipótese de uma estreita ligação entre o aumento global da produtividade agrícola devido às inovações tecnológicas e a política externa marcadamente anti-comunista dos Estados Unidos. Por conseguinte, sementes aparentemente mais produtivas surgem como uma arma estratégica durante a Guerra Fria, ou seja, como um contraponto ao espectro das revoltas na Ásia e na África.

[3] Em Armiero (2021) é possível encontrar um tratamento brilhante desta questão.

[4] Lorenzo Feltrin and Devi Sacchetto (2021) traduzem por “noxiousness” (que em português traduzimos por “nocividade”), a palavra italiana “nocività”, que «se refere à propriedade de causar danos. Na sua utilização pelo movimento operário, inclui os danos para a vida humana e para a vida humana, pelo que não pode ser traduzida meramente como “danos para a saúde (humana)” nem como “degradação do ambiente (não humano)”».

[5] Esta é a tradução normal da expressão italiana “rifiuto del lavoro”. Na minha opinião, “recusa do trabalho (assalariado)” exprime melhor o significado do original.

[6] Outra forma de dizer o mesmo é que: o ciclo de lutas de 1968-1973 levado a cabo pela reprodução social impôs uma bifurcação no nexo valor-natureza: se, anteriormente, a “natureza” era entendida como infinita e gratuita (nexo valor-natureza “clássico”), posteriormente, começou a ser vista como um elemento direto de valorização (nexo valor-natureza “novo”). É importante realçar que o “novo” nexo não substitui o nexo “clássico”, antes o complementa: é por esta razão que o conflito interno entre capital “ambientalmente sustentável” e capital “perigoso” não é uma cortina de fumo ideológica mas uma batalha real e bastante urgente.

[7] A minha posição sobre a “renda climática” diverge de outras abordagens perspicazes, como a de Felli (2014) e Andreucci et al. (2017). Felli argumenta que os créditos ou licenças de emissão de carbono não devem ser consideradas mercadorias, pois não correspondem à cristalização de qualquer tempo de trabalho social necessário. Por conseguinte, o comércio de licenças de emissão de dióxido de carbono não constituiria uma nova estratégia de acumulação, pois as pseudo-mercadorias comercializadas são apenas direitos públicos para emitir gases com efeito de estufa. Como tal, são componentes essenciais da renda climática, considerando-se “renda” como «uma relação distributiva – e não produtiva – que desempenha um papel contraditório na dinâmica do capital» (Andreucci et al. 2017: 8). Na minha opinião, os três processos descritos acima – exploração da reprodução social, financeirização e cognitização/digitalização – produziram uma bifurcação (não um esgotamento) da teoria do valor. Além do ambiente como “gratuito” e “infinito”, o capitalismo contemporâneo postula a “natureza” como um elemento interno dos circuitos de valorização. Como consequência, as mercadorias de carbono contêm, de facto, trabalho social abstrato cristalizado; simplesmente, este trabalho não é redutível ao tempo cronológico como unidade de medida. Desta forma, as mercadorias de carbono deverão ser consideradas como como conjuntos de trabalho-natureza transmitidos pela informação e explorados pela lógica do mercado. O valor dos créditos de carbono não decorre de uma árvore ou do oceano, mas antes do seu potencial de reserva conforme calculado para se adequar às estratégias de contabilidade dos mercados financeiros; não de uma semente, mas da sequência genética que a torna resistente a pesticidas biotecnológicos.

[8] A ontologia “hibridista” (ou seja, não dualista) de Moore tem sido criticada  como filosoficamente deficiente e politicamente não emancipatória (MALM 2018). Trata-sede uma crítica legítima que merece uma análise cuidadosa; no entanto, tal desviar-nos-ia dos objetivos deste artigo. Gostaria de realçar aqui um argumento diferente, aquele que diz respeito à relação entre exploração e natureza. Moore tem razão em argumentar que a primeira necessitou historicamente, para o seu funcionamento adequado, de que a última fosse “capitalizada” como contexto externo. No entanto, tal parece já não ser (completamente) verdade se olharmos para o tipo de criação de valor (ou seja, exploração), que ocorre numa série de mercados supostamente “ambientais”, em particular, no mercado de comercialização de carbono (LEONARDI 2017b).