por Luciana Castellina (tr. G. Ferraro)
[Il Manifesto, 27 de Julho 2021]
Ainda se encontra, entre os vários papéis que se acumulam e que nunca deitas fora porque talvez te lembrem momentos especiais da vida (e da história), um bilhete amarelado, uma mensagem a lápis tornado conciso pela circunstância. É de Otelo de Carvalho, morto ontem: um desaparecimento que afetou uma boa parte do mundo, a minha geração de forma profunda, a de todos os Millennials e afins, para os quais – descobri – o tão amado protagonista de um evento tão importante do século XX é um desconhecido.
Naquele bilhete, o general de Carvalho diz-me que o compromisso que teríamos umas horas depois salta: está a ser preso.
Não, não é o trágico mandado de detenção dos anos ’80, uma altura já inteiramente diferente, quando foi apanhado em casa e logo condenado a 15 anos de prisão por terrorismo, um episódio ainda todo por esclarecer, e muito provavelmente uma enrolação policial baseada na grande ingenuidade dele, ingenuidade que não lhe fizera nunca quebrar as relações com um pequeno grupo extremista na esperança de reconduzi-lo a desistir do seu ridículo plano golpista. Fizeram-no sair em liberdade provisória depois de dois anos e logo a seguir o amnistiaram porque – acho – os mesmos que o condenaram tiveram vergonha. Como Portugal inteiro, espantado perante tudo isto: prender o herói mais corajoso, mais popular da Revolução, que trouxera a democracia ao País, o que tivera um papel decisivo nos momentos – nos muitos momentos dificílimos – que marcaram por anos o processo que se seguiu à insurgência liberatória de um dos mais tristes regimes fascistas de Europa, o de Salazar.
Quando aquele meu compromisso com Otelo – já não o primeiro – se tornou impossível, era 1975, ou 1976, já não me lembro. Para prendê-lo, uma fação de direita do Exército utilizara ridiculamente uma norma que proibia aos militares declarações políticas (imaginem, os militares naquele momento eram a própria política, sendo que todo o poder estava nas mãos da assembleia do MFA, o Movimento das Forças Armadas!).
Eu estava em Lisboa, naquele momento, como redatora do “Manifesto” e fiquei lá por meses, e depois, outras vezes, indo e voltando, acompanhando o triste trajeto que no final “normalizou” o País. Disto guardo na memória uma daquelas imagens que nunca se apagam, pela alegria que evocam e, no oposto, pela dor. Ainda me faz chorar.
Tratou-se de um dos últimos atos: um Comité central do PCP reunido, por razões de segurança já necessárias, no ginásio de uma aldeia 100 km a norte de Lisboa – Alcobaça – onde eu chegara à noite junto com outros jornalistas porque nos tinham acordado e avisado que os “comunistas tinham sido cercados” e agora estavam barricados no ginásio, ameaçados por uma multidão armada de camponeses, contida “com dificuldade” – esta era informação oficial – pelo Exército, um batalhão mandado pelo general de direita Charais, operante no Norte de Portugal, a região conservadora do “minifúndio”, espantada pela mobilização que a reforma agrária provocara nas multidões trabalhadoras das regiões vermelhas do Alentejo, no Sul, aquelas do “latifúndio”.
Quando chegámos, já havia tiroteios, e fomos constrangidos a encontrar refúgio debaixo dos carros. Em seguida, a encenação daquela odiosa mortificação: os membros do Comité Central carregados nos carros blindados militares, uma longa coluna, e aos lados, exultantes, as bandas de pequenos agrários reacionários.
Através dos vidros entrevi o rosto pálido de Álvaro Cunhal, secretário do PCP, responsável por muitos grandes erros naquela altura, porém um homem que precisamente a 15 km dali, na prisão de Peniche, passara décadas, a mesma prisão em que, assim que foi preso, ficou amarrado pelos pés, pendurado de cabeça para baixo. Por dias.
A morte de Otelo provocou-me tristeza, ainda mais o facto de os jovens não saberem quem era. Talvez por isto estou a lembrar as coisas tristes da época dos Cravos, que foi pelo contrário uma extraordinária explosão de alegria e de criatividade popular. Que encontrava legitimação até mesmo num grupo de militares golpista, mas revolucionários. O contrário daquilo que acontecera, um ano antes, no Chile.
Entre as cartas que guardo, também tenho um curioso documento: a capa de uma publicação portuguesa da época, O Jornal, que representa os líderes revolucionários de todos os tempos sentados nas mesas escolares: de Lenin até Mao até Gramsci até Bakunin e Trótski sem esquecer nem Stalin nem Rosa Luxemburg, nem sequer Marcuse e Sartre e Bertrand Russell, o rosto absorvido como de quem está a enfrentar um quebra-cabeças.
Na ardósia o mapa de Portugal, dominado por um ponto de interrogação: o que diabo é esta revolução guiada por militares que leram Marx, já não um dos usuais golpes de estado militares, até progressistas embora autoritários, como muitos dos acontecidos no Terceiro Mundo, mas uma abertura de crédito completa e até excessiva para qualquer experiência social de base, uma extraordinária politização não simplesmente permitida como solicitada, um slogan, “poder ao povo”, que é também um projeto – o “plano-guia” – de democracia direta. Para todos, um rébus.
O verdadeiro enigma, a especificidade do acontecimento, era efetivamente este MFA, Movimento das Forças Armadas, que, afastado o reacionário general Spínola, assumira o controlo do País, encaminhando uma série de processos inéditos na história dos socialismos realizados.
E é bem compreensível que a experiência que arrancava tivesse fascinado a nova esquerda em toda a Europa, naqueles anos à procura de um caminho que não repetisse os erros soviéticos mas que também não marcasse a renúncia ao combate do capitalismo.
Não é de estranhar que Lisboa se tenha tornado imediatamente e por um longo período a capital dos “sessantottini” do mundo inteiro, italianos em particular.
Lembro-me que no aeroporto, ao lado dos écrans que anunciavam chegadas e partidas, havia cartazes que mencionavam os nossos agendamentos: “Lotta continua reúne-se hoje à noite às 22h30 em…”, “O Pdup-Manifesto às 21h neste lugar…”.
Nos nossos encontros à tarde, nos quais ficávamos imergidos logo que acabadas as manifestações de todos os dias, discutia-se até de madrugada e encontrávamo-nos com novos camaradas, que a Revolução dos Cravos de forma inesperada nos oferecera.
Nós, militantes do Manifesto-Pdup, nos encontravamos com os do Mes, o movimento da esquerda socialista, para os quais o nosso comunismo herético constituía um ponto de referência. Entre eles, Jorge Sampaio, que veio também a Bolonha para o nosso Congresso nacional de 1975, chefiando uma delegação do Mes, o movimento da esquerda socialista, e que até chegou ser eleito, de 1996 até 2006, Presidente da República Portuguesa.
Como acabaram as coisas, sabemos. Também entre nós – jornalistas e militantes de esquerda (as duas coisas muitas vezes se sobrepunham) – discutimos nos meses de declínio da revolução sobre a maneira de julgar o rapidíssimo seguir-se de acontecimentos.
Lembro-me dos longos telefonemas entre Lisboa e a redação de Roma: como avaliar o documento apresentado a 25 de Março por nove oficiais “razoáveis”, principal autor Melo Antunes, o mais sábio dos oficiais, que corretamente tentou uma estabilização razoável?
O que dizia Otelo, sobretudo, que também o assinou, embora ele pessoa razoável, no bem como no mal, nunca tenha sido?
Porém, o juízo de Otelo importava-nos, era uma validação decisiva. Porque todos sempre sentimos que teria defendido até ao fundo a ideia de que uma democracia o é se ao povo se derem todos os instrumentos possíveis para decidir.
Adeus, Otelo. Morreste de qualquer forma num momento melhor da vida política de Portugal do que aquilo que poderia ter acontecido: entre todos os países europeus, Portugal parece-me ser aquele que tem o melhor governo, um primeiro-ministro socialista entre os melhores, apoiado, embora com muitas críticas, por dois partidos de esquerda consistentes: o antigo PCP, que entretanto ganhou muito juízo, e o Bloque [sic], cuja primeira publicação oficial se intitulava “O Manifesto”, por causa do nosso jornal e da relação estreita que um dos seus fundadores, Miguel Portas, teve com o Pdup.