[Publicamos a tradução portuguesa da entrevista de Nick Dyer-Witheford com Emanuele Leonardi, publicada na edição 5/2021 da nossa revista]
Emanuele Leonardi (PT_16/11/2021)
Nick Dyer-Witheford: Há muitos anos que te conheço, mas é provável que os leitores deste website ainda não tenham tido esse prazer. Assim, para começar, podes falar-nos um pouco (da forma que achares melhor) sobre a tua formação intelectual e política e o trajeto que te levou ao “Operaismo e Ecologia-Mundo”?
Emanuele Leonardi: A minha formação política está ligada ao ciclo de lutas de alterglobalização em Itália. Fiz parte de um grupo que tinha fortes ligações com o ambiente do pós-operaismo (especialmente em Bolonha e Turim), pelo que o meu primeiro contacto com o operaismo foi enquanto ferramenta de militância. No início da década de 2020, não era de todo possível “estudar” Silvia Federici, Antonio Negri ou Mario Tronti nas universidades italianas. Na verdade, fiquei espantado quando passei um ano como estudante Erasmus em Inglaterra e me dei conta de que podia escrever ensaios sobre estes autores. As questões ecológicas, pelo contrário, tinham uma importância significativa nos planos de estudos, pelo que fiz muitas leituras sobre a crítica ao “desenvolvimento” e os movimentos de justiça ambiental. Assim, decidi escrever a minha dissertação de mestrado sobre o movimento No TAV (em português, “Não ao TGV”) no Vale de Susa (Noroeste de Itália)[1]. Estava muito entusiasmado com o envolvimento do centro social Askatasuna nesta luta e, ao mesmo tempo, muito desiludido com a ausência de uma articulação sólida do nexo valor-natureza nas análises operaistas. Decidi então concentrar-me nessa questão no meu doutoramento e tive a sorte de ganhar uma bolsa na UWO (Universidade de Ontário Ocidental) em 2008 e de te convencer a ser meu orientador (sabia que terias interesse numa dissertação sobre operaismo, pois tinha lido o teu artigo “High-Tech Proletariat”, que estava disponível em italiano na revista “Vis-à-Vis”, mas não sabia qual seria a tua reação a um projeto de investigação com um foco ecológico).
Depois de terminar o meu doutoramento em 2012, voltei à Europa e (re)descobri os trabalhos ecológicos de André Gorz da década de 1970. Pensei que a trajetória intelectual deste autor (do existencialismo à militância no protodecrescimento, à recusa do trabalho assalariado e à critica do capitalismo cognitivo) seria perfeita para desenvolver com maior profundidade a ligação entre o operaismo e o pensamento ecológico em geral. Tive mais uma vez a sorte de ganhar uma bolsa no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal), onde pude desenvolver o meu projeto sob a supervisão de Stefania Barca, que me deu uma grande liberdade de investigação e excelentes sugestões (especialmente no que se refere ao ecofeminismo). Assim, em 2017 pude finalmente apresentar o meu livro, Lavoro Natura Valore. André Gorz tra marxismo e decrescita (em português, Trabalho Natureza Valor. André Gorz entre marxismo e decrescimento) à editora italiana Orthotes.[2] O livro foi bem recebido, tive muitas oportunidades para o discutir nos círculos académicos e nos círculos de ativistas,[3] pelo que nos últimos 2-3 anos pude, por um lado, ultrapassar algumas das suas formulações e, por outro, elaborar uma série de desenvolvimentos, um dos quais o artigo para a PPPR, escrito originalmente no início de 2019.
NDW: O título do ensaio poderá surpreender muitos leitores. O operaismo não é normalmente associado de forma significativa ao pensamento ecológico, pelo menos no mundo anglófono. De facto, a sua enunciação mais influente, que é a de Antonio Negri e Michael Hardt (e devo referir, de passagem, uma parte do meu próprio trabalho), sempre se caracterizou por uma atitude claramente prometeica face à tecnociência e uma tendência “aceleracionista” pronunciada. O teu trabalho, e o dos teus camaradas, marca uma “cisão ecológica” no pensamento autonomista e pós-operaista? De forma semelhante, a tua articulação teórica de duas ideias aparentemente antagónicas de crise — como desenvolvimento e como colapso — em “Ecologia-Mundo e Operaismo” é impressionante. No entanto, o artigo não aprofunda muito a questão das lutas concretas que poderão vir a ser alinhadas graças a esta revisitação das tradições “operaista” e “ecológica”. Podes dar algumas ideias de projetos que possam ser inspirados pela confluência teórica que propões ou que, pelo menos, sejam coerentes com ela?
EL: Não me referiria ao meu trabalho como uma “cisão”; trata-se, antes, de uma “redescoberta”. Trata-se de um ato, de certa forma, semelhante ao gesto original do operaismo: voltar a Marx, mas não para reafirmar uma putativa ortodoxia; antes para realçar a originalidade de uma nova forma de problematizar Marx-como-um-arquivo. Na década de 1960, a ideia era utilizar de forma original Marx para compreender (politicamente) o surgimento de uma figura produtiva sem precedentes, a do operário-massa. Para nós, a ideia era utilizar de forma original o operaismo para compreender (politicamente) o surgimento da ecologia como elemento da composição de classe contemporânea.
O ponto de partida foi uma reavaliação das lutas contra a nocividade do trabalho em Itália (em toda a sua complexidade: os operaistas lideraram as lutas em Porto Marghera/Veneza sob a bandeira da recusa do trabalho assalariado[4], mas a ala esquerda da CGIL (Confederação Geral Italiana do Trabalho) liderou as lutas em Turim, na FIAT, e a sua palavra de ordem era a emancipação do trabalho assalariado. A possibilidade de uma leitura “ecológica” do operaismo já existia na década de 1980. No entanto, a grande maioria tomava por assente uma espécie de separação fundamental entre as questões de classe e as questões ecológicas, pelo que, no melhor dos casos, aquilo que os militantes propunham era a confluência de conflitos diferentes para o campo anticapitalista. A estratégia produziu resultados interessantes, por exemplo, o movimento antinuclear, mas acabou por ser derrotada pela ascensão do neoliberalismo. No entanto, em vez de questionar a separação, a maioria dos observadores ratificou-a como um dado de facto: pense-se na teoria dos “novos movimentos sociais”, que distinguia de forma nítida entre reivindicações de classe e reivindicações identitárias (incluindo as ambientais).
Pensámos que um “gesto operaista” se poderia revelar útil para reformular a ligação entre classe e ecologia no contexto da hegemonia neoliberal e do alastramento de um ciclo de lutas anti-austeridade a partir de 2011. Um dos pontos principais que quis defender no meu livro de 2017 foi que, em Itália, as questões ambientais, foram politizadas através das lutas dos trabalhadores, e não apesar delas. Compreender a separação entre trabalho e ambiente como o resultado de uma derrota política (e, por conseguinte, não como um dado natural ou um a priori histórico) foi instrumental para colocar a questão estratégica da convergência das lutas de uma forma adequada ao tempo presente. O desafio é elaborar quadros políticos que associem de forma íntima diferentes questões decorrentes da violência capitalista, que embora pareçam diferentes à superfície, têm as mesmas raízes. Ocupo-me atualmente da justiça climática seguindo estas linhas de investigação (voltarei a este ponto mais tarde). Também procurei encontrar um terreno comum para a discussão com a Ecologia-Mundo. Outros autores exploraram caminhos diferentes, embora mantendo uma abordagem semelhante: Maura Benegiamo alargou o âmbito de análise ao extrativismo[5]; Lorenzo Feltrin associou de forma convincente a luta contra a nocividade da década de 1970 e os conflitos contemporâneos dos trabalhadores no contexto da pandemia;[6] Davide Gallo Lassere tratou as últimas investigações de Andreas Malm através de uma perspetiva operaista.[7] Além disso, alguns camaradas-académicos, os quais não estou certo que se identifiquem como operaistas, contribuíram imenso para o nosso empreendimento: o espaço é reduzido para os muitos nomes que seria necessário mencionar, mas não posso deixar de citar os nomes de Stefania Barca[8] e Salvo Torre.[9]
Duas observações finais: a) que o nosso pensamento é uma “redescoberta” e não uma “cisão” é testemunhado, na minha opinião, pelo recente interesse pela ecologia demonstrado por Toni Negri[10] (ainda mais pelo facto de o autor desenvolver o seu argumento através de um confronto crítico com André Gorz); b) a minha impressão é de que existe um elemento geracional no nosso pensamento: temos todos menos de 40 anos e a nossa formação política inclui as lutas ecológicas como momentos fundacionais (o que não é de todo o caso nos camaradas operaistas mais velhos).
NDW: Encenas um encontro ecológico com a obra de Mario Tronti. Seria correto dizer que este encontro nos convida a considerar uma deslocação, das lutas na fábrica, não apenas para a “fábrica social”, mas também para uma “fábrica planetária”, concebida com o duplo significado de uma subsunção global e de uma modelação da terra pelo capital?
EL: Sim, julgo que é absolutamente correto. Talvez “fazenda planetária”, um termo sugerido por Rob Wallace,[11] fosse mais apropriado, pois capta de forma mais exaustiva a dimensão ambiental da exploração contemporânea (que vai além do local de trabalho industrial). No entanto, para lá das designações, aquilo que sugeres ser uma combinação capitalista de subsunção global e modelação do planeta deve ser, sem dúvida, um tema para reflexão. Li recentemente o teu ensaio “Struggles in the Planet Factory: Class Composition and Global Warming” (2018) (em português “Lutas na fábrica planetária: composição de classe e aquecimento global”) e concordo em absoluto com o teu argumento. Aquilo que gostaria de acrescentar à tua periodização da governança climática (que terminou com a “Inversão reacionária dos EUA” personificada pelas ações iniciais da administração Trump) é que o colapso do COP 24 em Katowice, em 2018, não se deveu apenas ao aparecimento de uma posição negacionista explícita no seio da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (liderada pelos EUA, como corretamente apontas), mas também, se não sobretudo, ao abandono, pelas grandes ONG ambientais, do seu papel tradicional de “legitimadores”. Na minha opinião, o aparecimento de Greta Thunberg como líder da justiça climática global representa este estado de coisas: as grandes ONG deixaram de ratificar implicitamente o sistema COP, pois este não cumpre as suas promessas, mesmo mais de uma década após a sua total implementação. Claro que tudo isto é reversível, e poderemos ter uma ideia dos desenvolvimentos que nos esperam na próxima COP 26, organizada em conjunto pela Escócia e pela Itália. No entanto, é importante sublinhar que a dupla rutura no final de 2018—seguida, em 2019, pela retirada dos EUA do Acordo de Paris e pelo enorme impacto das greves climáticas globais — implicou uma profunda crise da economia verde (e da respetiva tradução no aquecimento global: embora as alterações climáticas sejam geralmente consideradas uma falha do mercado, pois este não contabilizara as alterações climáticas como externalidades negativas, no entanto, tal apenas pode ser resolvido por uma nova onda de mercantilização). Mais uma vez, é muito difícil dizer se esta ideia — que tem funcionado como o pilar da governança climática desde Quioto (1997) — está morta ou simplesmente adormecida, à espera de voltar. No entanto, o que pode ser dito, é que as suas afinidades eletivas com as medidas de austeridade (veja-se, por exemplo, o Pacto Ecológico da União Europeia) parecem estar em desacordo com novas estratégias, aparentemente mais assentes no investimento público (veja-se, por exemplo, o plano Próxima Geração UE/ “Next Generation EU”). Poderão soluções baseadas no Estado (obviamente igualmente orientadas para o lucro) ser mais eficazes na estabilização da crise climática? Acredito que será esta questão a afetar as lutas na fábrica planetária no futuro próximo. Os elementos a ter em atenção são: o papel da China e da nova administração dos EUA, de um ponto de vista geopolítico; a capacidade para unir de forma fundamental questões de classe e questões climáticas no que diz respeito a práticas conflituais de baixo para cima em todo o mundo.
NDW: Tronti estava fascinado pelo papel desempenhado pela luta dos trabalhadores no compromisso de classe do New Deal na década de 1930 nos EUA. Na tua opinião, qual seria a posição “operaista” contemporânea relativamente às propostas do New Green Deal, ou Pacto Ecológico da União Europeia?
EL: Precisaria de mais tempo para pensar numa resposta equilibrada. No entanto, alguns elementos preliminares parecem-me bastante claros. Em primeiro lugar, se o New Deal original tinha como objetivo incluir a classe trabalhadora nas suas dinâmicas de desenvolvimento cortando os seus laços com a esfera da reprodução, a ambição do New Green Deal, ou Pacto Ecológico da União Europeia, é incluir aquilo que Stefania Barca designa como trabalho de “cuidado da terra” (“earthcare”) ou forças de reprodução. Neste sentido, é difícil identificar tanto a vanguarda da luta (a greve dos agricultores indianos parece ser mais nociva para o capital do que a tradicional agitação operária) e o ponto mais elevado de desenvolvimento (poderíamos optar pela IA ou as plataformas digitais, como sugerem os aceleracionistas, mas falharíamos por completo a perspetiva ecológica). Uma forma possível de resolver este enigma seria considerar que a forma como a valorização e o ambiente interagem (que podemos designar como “nexo valor-natureza”) sofreu uma importante mudança histórica. O ciclo de lutas 1968-1973 impôs uma bifurcação no nexo valor-natureza, enquanto, anteriormente, a “natureza” era percebida como infinita e gratuita (nexo valor-natureza “clássico”), após este ciclo de lutas, a “natureza” começou também a ser vista como um elemento direto de valorização (nexo valor-natureza “novo”). É importante sublinhar que o “novo” nexo não substitui o nexo “clássico”, antes o complementa: é por esta razão que o conflito interno entre capital “ambientalmente sustentável” e capital “perigoso” não é uma cortina de fumo ideológica mas uma batalha real e bastante urgente. Para voltar à questão do Green New Deal, esta forma de enquadrar o nexo valor-natureza tem uma implicação importante: no que diz respeito ao nexo “clássico”, a redução da produção[12] surge como uma necessidade absoluta; quando se trata do “novo” nexo, o redirecionamento do trabalho reprodutivo (ou, por outras palavras, a libertação do seu potencial neguentrópico — ou, ainda noutra fórmula, a sua desmercantilização) parece ser a melhor opção. Desta forma, o Green New Deal pode ser visto como, ao mesmo tempo, incluindo posições inspiradas pelo decrescimento (redução das atividades entrópicas) e posições aceleracionistas (redesenho dos meios de produção digitais para lá do motivo do lucro e das relações de propriedade privada).
Um segundo elemento interessante, na minha opinião, é a forma como o GND restrutura a relação triádica igualdade-ambiente-crescimento. Em termos um pouco simplistas, podemos ver o seu desenvolvimento histórico da forma que se segue: a) o New Deal original —reagindo à Revolução de Outubro de 1917 — estabeleceu uma ligação entre crescimento e igualdade (tendenciosa, é certo, e predicada com base na exclusão dos sujeitos de reprodução social — mas não há duvidas de que foi eficaz numa parte significativa do globo); b) o colapso do regime fordista (devido a pressões muito diferentes, mas convergentes, como as lutas globais e a revolução neoliberal a partir do topo) estabeleceram uma ligação entre o crescimento e (a promessa de) proteção ambiental — este é o quadro da economia verde que, após quase duas décadas de implementação, revelou uma contradição insanável entre objetivos ecológicos (pressupostos) e meios económicos (efetivos) e; c) a crise profunda da governança climática liderada pela ONU (2018-2019) polarizou o campo político de tal forma que o negacionismo explícito confronta agora de forma bastante direta a opção pela justiça climática: o primeiro acarretaria um foco no crescimento com prejuízo tanto da igualdade como da proteção ambiental; a última abriria o espaço político para considerar uma forte ligação entre igualdade e ecologia em prejuízo do crescimento. De certa forma, penso que é esta a forma que a luta de classes poderá tomar num futuro próximo — embora a estabilização pós-austeridade ainda seja possível (afinal, poderá ser esse o modo contemporâneo do compromisso de classe mencionado por Tronti).
NDW: Para finalizar, queria fazer-te uma pergunta sobre a pandemia. O teu trabalho desenrola-se precisamente no epicentro de um dos locais da Europa mais afetados pela catástrofe da Covid 19, o Norte de Itália. Além da tarefa diária de sobrevivência e perseverança, esta questão está de alguma forma a reconfigurar a linha de pensamento inaugurada neste ensaio?
EL: Sem dúvida alguma. No entanto, antes de aprofundar essa questão, deixa-me só dizer que a reflexão que é objeto deste ensaio já estava profundamente inserida num processo político: em 2018, alguns camaradas que trabalhavam em ecologia política viviam literalmente como pregadores, saltando de um comboio para o outro para se encontrarem com jovens militantes e organizarem sessões de leituras sobre a crise ecológica e o aquecimento global com base na luta de classes. Eu fiz parte desse grupo: na altura, era possível ver um certo interesse nos nossos públicos, mas não houve grandes resultados em termos de ação. Um dos momentos-chave desta tentativa de “ecologizar” os movimentos de oposição em Itália (e não apenas o setor operaista) foi a “tournée” de Jason Moore em junho de 2018. Durante nove dias, viajámos de Sul a Norte de Itália e demos várias conferências (tanto em universidades como em centros sociais). A ideia de “fazer a ponte” entre MA e EM ganhou forma naquele contexto.
No entanto, como sempre, por si só, as boas ideias não levam a grandes transformações. Ainda assim, é importante que as ideias estejam prontas, quando sucedem acontecimentos imprevistos. Com efeito, o salto em termos de organização popular de base teve lugar em 2019, quando surgiram coletivos de Ecologia Política (em Milão e Turim)[13] e foram organizados os primeiros Climate Camps (em Veneza). Estes processos reuniram-se imediatamente às greves climáticas (a primeira e a terceira, em especial, tiveram um enorme impacto em Itália) e desempenharam um papel central na radicalização progressiva de movimentos como as Fridays for Future (o resultado da sua segunda assembleia nacional, que teve lugar em outubro de 2019, em Nápoles, é um documento absolutamente fantástico)[14] e o Extinction Rebellion[15]. A pandemia deve ser analisada neste contexto: no Norte de Itália, as escolas foram fechadas a 24 de fevereiro de 2020, um dia após um encontro nacional de grande sucesso da Rede de Ecologia Política, que planeara várias atividades com vista à organização daquela que teria sido a quinta greve global (que estava marcada para 24 de abril de 2020). O Covid-19 foi um desastre de todas as perspetivas possíveis: em particular, estávamos confiantes de poder intensificar a convergência com uma série de sindicatos (sobretudo com os militantes base, mas não só), mas evidentemente que nunca chegámos a saber se as nossas expetativas eram justificadas.
Neste contexto extremamente dececionante, decidimos que era importante elaborar e divulgar uma análise ecológica da etiologia capitalista da pandemia. A Rede de Ecologia Política foi a primeira a traduzir os ensaios e intervistas de Rob Wallace[16], além de outros documentos essenciais, como o artigo de Adam Tooze sobre a ligação entre o Antropoceno e a crise económica[17]. Além disso, organizámos uma série de webinars de grande sucesso, com o título “Primeiro a Saúde! Pandemia: Sintomas de uma Crise Ecológica Global”[18]. Finalmente — e o que é mais importante em termos da reconfiguração da investigação militante causada pelo Covid — começámos a repensar a justiça climática como quadro político unitário para uma interpretação abrangente das três frentes de luta que surgiram em Itália na conjuntura da primeira onda da pandemia: a saúde dos trabalhadores, o rendimento dos trabalhadores precários e a ajuda mútua. A insubordinação dos trabalhadores representou o momento mais original e inesperado desta fase. Quando o primeiro-ministro italiano Conte afirmou que “vamos fechar tudo exceto as fábricas”, os trabalhadores responderam de forma determinada reclamando a prioridade social da saúde relativamente ao lucro. A greve de 25 de março forçou todos os atores sociais a posicionarem-se relativamente a essa linha política, sendo que, como é óbvio, aqueles que têm como referência a ecologia política não hesitaram em alinhar com a posição dos trabalhadores. Ajudámos a difundir as perspetivas dos sindicatos, que revelaram uma sobreposição significativa entre os mapas do contágio e os mapas da exploração (a contribuição do sindicato de base SI Cobas foi particularmente importante a este respeito). A nossa contribuição consistiu numa crítica ecológica das cadeias de valor alargadas e do “just-in-time” e num argumento político de acordo com o qual o aumento do poder dos trabalhadores relativamente à gestão da saúde do local de trabalho deve ser considerado um pré-requisito de justiça climática para a implementação eficaz da muito falada Transição Justa. Por exemplo, quando a Alemanha proibiu a subcontratação no setor da carne (em dezembro de 2020)[19], penso que demonstrámos de forma bastante convincente as implicações sociais e ecológicas positivas dessa decisão.
A segunda linha da frente teve a ver com a situação dos trabalhadores precários: foram efetuadas campanhas em favor de um rendimento de “quarentena”, ou do alargamento dos programas existentes na direção de um rendimento básico incondicional ou, mais uma vez, a exigência de um rendimento de cuidado. Procurámos assinalar a dimensão ecológica do rendimento básico incondicional: com efeito, uma medida deste tipo iria desarticular o nexo produtivista entre crescimento económico e pleno emprego que esteve no centro do mecanismo de inclusão social típico do período fordista. Neste ponto, abrem-se cenários importantes quando se tem em conta que a pandemia exige, simultaneamente, uma mobilização plena do trabalho “reprodutivo”, e uma desmobilização significativa do trabalho industrial (especialmente a que facilita a circulação dos agentes patogénicos). Neste ponto, mais uma vez, o protagonista é a reprodução social e o campo de luta é o Estado-Providência.
Em terceiro lugar, a ajuda mútua: logo em março surgiram algumas experiências para combater situações de emergência social, que eram, e permanecem, generalizadas.[20] Estas iniciativas variam muito (dependendo, em grande parte, dos municípios em causa: em alguns, há apoio às iniciativas, noutros, indiferença, noutros ainda, uma obstrução desanimadora), mas todas elas, pelo menos quando a Rede de Ecologia Política está envolvida, dependem de uma relação estreita com os fornecedores locais, que respeitam não só a terra mas também os trabalhadores que a cultivam. Aqui em Parma, com os camaradas do Potere al Popolo! (um partido de esquerda), organizámos um Apoio Popular,[21] que teve início em abril e ainda está ativo. A ideia principal é assim encurtar a cadeia de fornecimento através da soberania alimentar, de modo a apoiar situações com condições de trabalho dignas e a promover a auto-organização como resposta eficaz à crise pandémica. Relativamente ao Norte de Itália, Tania Rispoli e Miriam Tola falaram do surgimento de uma logística feminista[22]: na minha opinião, é a melhor definição que se pode dar, e as implicações para a justiça climática são simplesmente fundamentais.
No verão de 2020, entre a primeira e a segunda onda da pandemia, conseguimos organizar dois importantes momentos de ação coletiva: o Campo de Ecologia Política no Vale de Susa (fim de julho) e o segundo Campo Climático em Marghera (início de setembro), onde foi lançada a plataforma “Rise Up for Climate Justice”[23]. A sua função é apoiar os militantes e a organização de ações diretas; esperamos conseguir organizar uma ação de luta concreta em torno da cimeira Pré-COP 26 e da Cimeira da Juventude da ONU, ambos marcados para o fim de setembro em Milão. Entretanto, o processo de pesquisa militante continua em movimento: nos próximos meses estamos a planear um momento de discussão interna (dedicado ao “operaismo ecológico”) e uma reflexão mais geral, dedicada ao movimento de justiça climática como um todo, relativamente à crítica política do sistema COP, desde as suas origens até à sua forma atual.
* Tradução de Rui Martinho. Artigo original em inglês: E. Leonardi, Autonomist Marxism And World-Ecology: Nick Dyer-Witheford Interviews Emanuele Leonardi, projectpppr.org, online, 26 February 2021: https://projectpppr.org/pandemics/vv28ivjg8ux4uo5qzy8qav9cl0gs3g
Notas de rodapé:
[1] https://www.tandfonline.com/toc/rcns20/24/2?nav=tocList
[2] https://politicalecologynetwork.org/2018/04/12/radicalizing-the-ecological-transition-reflections-on-lavoro-natura-valore-andre-gorz-tra-marxismo-e-decrescita-by-emanuele-leonardi/
[3] Numa perspetiva académica, o POE (Políticas, Ontologias, Ecologia), um grupo de investigação coordenado por Luigi Pellizzoni (poeweb.eu), constitui um ótimo espaço de discussão. Numa pespetiva militante, a plataforma Ecologie Politiche del Presente (https://www.ecologiepolitiche.com/), sediada em Nápoles, é indispensável. A secção “Ecologia Política” do website Effimera (http://effimera.org/categoria/ecologia-politica/), lançada em 2015 e coordenada por mim e por Alice Dal Gobbo. Entre as duas esferas, a rubrica mensal “Ecologie della Trasformazione”, que dirijo no blogue literário “Le parole e le cose” (http://www.leparoleelecose.it/?tag=ecologie-della-trasformazione) – tem sido o instrumento para divulgar as nossas reflexões para lá dos dois nichos.
[4] Em português, a tradução consagrada de “rifiuto del lavoro” é “recusa do trabalho”, mas prefiro “recusa do trabalho assalariado”, pois, na minha interpretação, o que se recusava era a organização capitalista do trabalho na forma de trabalho assalariado e não tanto o “trabalho” enquanto prática transformativa genérica, como um filtro antropológico entre a sociedade e a natureza. Os líderes do CGIL, por seu lado, como Bruno Trentin, pretendiam a emancipação do trabalho assalariado neste último sentido, o que não passava necessariamente pela recusa do trabalho assalariado. No entanto, isto não significa que as duas perspetivas possam convergir facilmente: para os operaistas, a forma de trabalho assalariado é uma barreira fundamental à emancipação, pelo que este tipo de trabalho deveria ser imediatamente recusado; para os sindicalistas de esquerda, a forma assalariada é um terreno de disputa, em que podem ser alcançadas melhorias sociais, pelo menos em certa medida. De qualquer forma, não se trata de um mero debate historiográfico: para compreender de forma adequada as potencialidades e limites das estratégias sindicais contemporâneas como a “Just Transition” é preciso ter em conta esta fricção e procurar uma solução (ou pelo menos uma “mitigação”).
[5] https://www.sinpermiso.info/textos/territorios-extractivos-y-la-politica-de-los-muertos-vivientes-el-desarrollo-capitalista-en-la-era
[6] https://roarmag.org/essays/workerist-environmentalism/
[7] http://www.contretemps.eu/capitalisme-ecologie-climat-anthropocene-ecosocialisme/
[8]https://www.cambridge.org/core/elements/forces-of-reproduction/BE9B0DBDC89593F3284FE3F51D3B0418
[9] http://www.leparoleelecose.it/?p=39135
[10] http://www.euronomade.info/?p=14065
[11] https://newint.org/immersive/2021/01/06/planet-fjf-farm
[12] A quantidade de materiais e energia que atravessa o sistema económico.
[13] Atualmente, existem dezenas de coletivos da Rede de Ecologia Política em toda a Itália.
[14] https://fridaysforfutureitalia.it/report-2-assemblea-nazionale/.
[15]https://isolenellarete.wordpress.com/2021/02/17/intervista-a-ecologia-politica/?fbclid=IwAR0H5vCm1Aziy8H0RawPwEspBWEx_SqBbsMO3rAIBuQwSwDcpSWlb-tBYMs
[16] Para ser justo, não estivemos sozinhos: os camaradas do Pungolo Rosso também fizeram um ótimo trabalho na divulgação destas análises (veja-se, por exemplo: https://pungolorosso.wordpress.com/2020/04/09/covid-19-e-le-spire-del-capitale-di-rob-wallace-a-liebman-l-f-chaves-rodrick-wallace/ ).
[17] https://www.theguardian.com/books/2020/may/07/we-are-living-through-the-first-economic-crisis-of-the-anthropocene
[18] Ver: https://www.youtube.com/channel/UCr9bVNqglajTBRmQ1l5ulnA . Na primavera será publicado um e-book gratuito com todas as intervenções.
[19] https://www.business-humanrights.org/en/latest-news/germany-new-law-ends-subcontracting-in-pandemic-stricken-meat-industry/
[20] O documentário “Non ci vede nessuno: la società della cura” (em português “Ninguém nos vê: a sociedade do cuidado”) descreve de forma clara algumas destas experiências.
[21] https://voladora.noblogs.org/post/2020/05/23/supporto-popolare-a-parma-un-bilancio-provvisorio-e-qualche-idea-per-proseguire/
[22] https://www.jstor.org/stable/10.15767/feministstudies.46.3.0663?seq=1
[23] https://www.globalproject.info/it/in_movimento/nasce-rise-up-4-climate-justice/23015