por Marília Muylaert* [PT_27.03.2021]
Dor é vida exacerbada. O processo dói.
Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa.
É o espreguiçamento amplo até onde pode se esticar.
(Clarice Lispector)
Como abordar o momento histórico sem precedentes – inclusive, porque sempre inédito – quando somos atravessados pelos mais diversos modos de exercício de poder sobre nossos corpos? Sentimo-los todos, nos rasgando e estirando nossas fronteiras por todos os lados, de inúmeras perspectivas, atiçando nossos afetos primais do modo mais vil e indecente, acusando o corpo de fome, de frágil, de vítima. Não vou iludir, estes são escritos políticos…
Diversas forças, pendências e tendências, hábitos e liberdades contritas ao tempo e espaço e à dimensão da Vida. Que escorre, que insiste, mas também desiste, foge, escapa.
Brasileira, olho meu país com espanto e quase desespero. Mortais desde sempre, ignoramos 3000 mortos diários, milhões em fome, pânico de viver, vida em pânico de ser tão pequena… Assisto a metódica violência do subjugo das vontades, ao abissal impensado de invejar um pedaço de pão. Ira Santa, contra o que?
Como detectar em nós, como identificar estar sensível à estas disputas por nossa Vontade de Viver? São extraordinariamente sensíveis as oscilações no corpo, por todo o corpo, mensagens captadas pelos ventos e cabelos, pés e dor, capenga, ouvido perfeito. Por sustos noturnos e incertezas micróbicas, paranoia, mal estares de toda ordem… E Gal Costa canta… o corpo ali escravizado por sua dor… apanhando de si…
…Você que ataca
Pra se defender
Que beija a lona
Pra poder vencer
Você num canto
Apanha tanto
Enquanto o outro você
Bate demais
Deus do céu
Quanto sangue pelo chão
Seu irmão
Pede o seu perdão.
(Composição: Gilberto Gil)
Entretanto, ‘Ele’ não nos trai, ‘Ele’ sabe, nos alerta, a própria matéria de expressão da Vida em nós comunica seus saberes, tenta fazer-se expressar, mudar o percurso, virar o leme… A confiança inequívoca desta massa concreta e multiversa na Vida, a a-tração de seus agenciamentos que ali se compõem, sua vulnerabilidade sensível de forças em redes, rizomas, raízes superficiais, extensas e infinitas… garantias para o viver. Sabermos-sermos seus efeitos, por nós construídos, produzindo sua produção. ‘Ele’, o Corpo, sabe. Porta saber, história, produz história, traça caminhos, linhas, tracejados segundo suas articulações, ao limite do espreguiçar-se, agenciamentos, campo vital, sua Força de Existir, como nos encanta Espinosa.
Lembrar cotidianamente a fugacidade e força da Vida, dos valores que a sustentam, destroem, constroem, produzem brilho ou opacidade. Luz e sombra ainda como perspectivas da dualidade implicada no par bailante… E insistir…
Como sensibilizar o pensamento do corpo para os alertas que emite, os sinais que emana, suas escuridões, becos, luzes e cabarés…
Há certa fraqueza em nós que não nos abandona – nem abandonará, pois nos constitui – que cresce e nos adoece de desumanidade, indiferença, cheia de nós mesmos, esvaziadas da construção do Si. Corre por nossa espinha o gélido clamor dos modos capitalísticos de subjetivação, demando sua perfeição idealizada, porque ideológica, de alcançarmos o patamar áureo de vencedores. A velocidade e aceleração destas forças nos rodopiam, entorpecem nossos sentidos, anestesiam sensibilidades, procrastinam criações e apetites vitais, vislumbramos delirantes e sacramentadas, as promessas de láureas e louros. Oasis delirante de linha de chegada, desativa nosso querer pela Vida, esta outra qualidade que nos compõe, com a qual podemos contar na solidão, nossa companhia para viver.
Uma Força, um feixe que tem força, nós a experimentamos, nós a sabemos. Mas que se alastra nos enfraquecendo, nos apequenando, ativando os modos vis em nós, que nos produz ressentido, odiento, incivilizado. Odiar como fonte única de expiação dos males que o phatos da Vida nos faz sofrer, como o que tem ação sobre nós, como no sofrer a ação. Toda Vida sofre a ação de ser mundo, e também, é constituída por todas as partes de nós que comungam com o cálice que deve ser afastado, como já diria Chico Buarque de Holanda, de vinho tinto de sangue. A experiência do pathos como O mal, como parte daquilo que provoca dor e me faz gostar menos de viver… aquilo que nos desloca para os afetos mais mesquinhos e duros, dureza que existe no terror de quebrar… A eterna dúvida da força Fraca…
A força fraca surrupia a Alegria e Força da Vida, sim aquela maior, Maiúscula, que vai para além de nós, de nosso tempo, que perdura, produz tempo e história, esta mesma que é feita dos que a construíram antes de nós, onde pisamos, ainda que seja para desconstruir.
As histórias que constroem histórias. Grandes e pequenos. Fortes e fracos. O Senhor e o escravo. O Torneiro e o doutor. Grande e pequeno são sim, modos de decidir, de viver, de como construir a Vida.
Na foto que abre estes escritos, encontrei uma posição marcada de história, participei e percebi boquiaberta o processo de fazer-se um acontecimento. O ataque dos Fracos aos Fortes, não como entes individuados, mas como Forças de expressão da Vida. Vemos dignidade e pequeneza. Sentimos Honra e vileza, Vida pulsante e criadora de mundos, Vida construída pelo crivo do Poder em exercício, costurando ilicitudes, impropriedades, desrespeito, ilegalidade. Terror e pressa em reafirmar-se pré-potente, a tentativa de humilhar o que é Grande na Vida, o que contamina e constrói campos férteis de valores vitais, onde há um solo e o que florescer… que ele aponta no outro.
‘Em se plantando, tudo dá’… já descrevia a Carta da anunciação da Terra Brasilis… Nada mais impiamente verdadeiro, pois tudo depende da oportunidade dos processos das sementes… Há o indecidido que habita cada ação no mundo, há jogos de forças, há campos em debate. Há prisão, contenção, expiação da audácia de amar a Vida com o todo que ela porta, o Bem e o Mal, o Certo e o Errado, o Falso e o Verdadeiro, o normal e o patológico, erros e acertos, intervir na Vida para escorraçar sua Vontade para longe… Pouco importa quantos morram, adoeçam da fome ou da peste, da guerra ou da falha no processo civilizatório. O que indica meu poder é seu cabimento ao crivo perfeccional de seu exercício, onde ele aparece. Por isto o outro não pode sequer possuir-se, pois me reconheço na falta. Importa, a qualquer custo, um agora sem fim da benesse ou da fama, do prazer mórbido e pornográfico egocentrado, no triunfar de valores duvidosos, canalhas, cruéis e pérfidos, escravos, individualistas, de constrição infringida para minguar e minar a Vontade de vida. Morte à Potencia ativa!
Diante da inevitabilidade do acontecimento, irrecusável, irrepetível, político, historicamente forjado, não há escolha, há apenas a decisão: morrer ou viver e, se viver podemos, sim e muito, decidir como.
Como lembra Zaratustra, estamos SEMPRE no portal do instante, com um infinito antes/atrás de nós, um infinito à frente/adiante de nós. Este o Devir. Estes os traçados que, a cada momento, temos que decidir o ‘como’ do viver: De modo grandioso, apequenado, por si, por todos, pelo Poder, pela Vida? Digno?
Viver é construir-se e ao mundo, a cada momento. Temos o dever e o direito, a não-opção de travar o jogo digno, lícito, invulgar, único de construir a Vida. A micropolítica nossa de cada instante. Decidir pela grandeza a cada vez… esta a esperança, a confiança, a oração, o devir, o olhar amplo, a dignidade de decidir, de fazer diferença, de diferenciar e pluralizar a grandeza da Vida.
A cada traçado, a fluidez das forças que o tempo porta, nos atravessa e ruge. Encontra em nós outras forças, afetam-se e jogam: o próprio jogo da Vida. A enormidade deste pensamento anima fontes inesgotáveis, a avaliação inequívoca do corpo produzindo sua Força de Existir. Tratamos aqui da qualidade do que têm poder em nós. O que é valor? Tem valor, experimentado e sustentado pelo corpo, a cada vez? O que nos importa? O que faz diferença em nós? Quando a escassez, a falta e o egocentrismo pesam nuvens? Como nos alteramos, nos deslocamos, nos movemos em momentos de suspensão de gravidade, sem solo, sem chão?
Sempre o jogo, a ludicidade dos dados, acaso e ação construindo processos. Afecções, fato e efeito dos processos, emblemam sentidos vitais por vezes antagônicos, valores que dão a dimensão logística do corpo no mundo, variando com a vigência destes valores, expressão inequívoca de seus agenciamentos. Esta relação de estrangeirismo a si mesmo, também é de jogo de forças, alicerça os movimentos do Corpo na gestação de devires.
Este desassossego é, também, linha de fuga. Pode ser. Tem potencia. Cria rotas, clareiras, procura sobreviver e viver em tempos sombrios. Tornar o indecidido e o sensível, partes constituintes da Vida. De todas as vidas. Enfrentar o fascista em nós, tomar conta de seus movimentos, impor-lhe outras forças: Cálice!
Termino com uma história sobre o neto da ex-Presidenta Dilma Roussef, contada por ela. Depois de ter deixado seu tempo livre para a Live onde conversava com mais quatro diferentes mulheres brasileiras – politizadas e queridas – ela conta que, talvez, a dificuldade dela ‘fazer lives’ fosse muito explicada pela sensibilidade da percepção de seu neto… Ele reclama que não gostava do ensino à distância de se ver (assistir) na tela quando tinha aulas. Não queria ver a professora e a si – somos acostumados a ver o outro – quero ver meus amigos e não me ver. Não gosto desta aula… Isto não está certo, vovó…
Não racionalize e apenas sinta a imensidão deste saber… Jogar como uma criança, o mais sério empreendimento, a mais árdua tarefa, da qual quase nem a fome demove. Tanta sabedoria num corpo de 6 anos.
O pensamento, o corpo e o arbítrio, a favor da Vida. Pura política.
De que modo você gostaria que sua história fosse contada? O solo mais firme é aquele que conseguimos surfar… Nosso dilema não tem fim, alegrem-se!
*Marília Muylaert é psicóloga clínica, pós-doc em Filosofia na Universidade Nova de Lisboa e Professora reformada de Psicologia na Universidade Estadual Paulista, Brasil.